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Os riscos da Globalização

 
 

As grandes instituições que norteiam as relações entre os homens fundaram-se há centenas ou mesmo milhares de anos. A existência do mercado é uma dessas grandes instituições. Nele se cruzam os interesses de quem procura e quem vende ou troca, satisfazendo os interesses de ambos, se funcionar bem. O mercado é também o ponto de encontro de troca de informações entre o consumidor e o produtor. A este cabe detectar as necessidades do mercado e satisfazer essas necessidades, recebendo em troca a correspondente mais-valia. Simples.

 
O maior erro do marxismo foi decretar o fim do mercado como forma de eliminar a exploração do homem pelo homem, aliás, ignorando outro grande princípio das relações humanas: os homens não são iguais e, como tal, a cooperação nunca se traduzirá em ganhos iguais. A igualdade utópica não acontece no capitalismo como não aconteceu durante os regimes comunistas nem em nenhum outro, no passado. O mito da igualdade entre os homens não passou disso mesmo: um mito.
 

Da mesma forma, não há memória de um mercado sem autoridade. Bem ou mal, justa ou injustamente, os mercados sempre foram regulados por alguém, seja o senhor feudal, o alcaide ou o rei. Também o acesso aos mercados foi sempre limitado. Os interesses locais, regionais ou nacionais sempre se impuseram aos interesses exteriores. A não ser que, por força de acordos ou pela força da espada, os interesses das comunidades fossem subjugados diante de interesses maiores.


A Globalização não pode esquecer os erros do marxismo nem os outros erros que a história registou. As teorias de engenharia social que não respeitem os grandes princípios que fundaram a Humanidade estão irremediavelmente votados ao fracasso. Sejam o marxismo, o neoliberalismo económico ou uma certa visão de Globalização não regulada. Os arautos do marxismo viram o seu sonho ruir em 1989, quando Muro de Berlim lhes caiu estrondosamente em cima, depois de décadas a negar o óbvio: não há sociedade funcional sem mercado e sem livre iniciativa.

Também os fundamentalistas do mercado viram as suas teses reprovadas pela realidade, perante a crise de 1929 nos Estados Unidos ou as experiências ultra-liberais das últimas décadas na América Latina, que culminaram, nomeadamente, com o estrondoso colapso da Argentina, que só muito a custo tem recuperado da falência económica a que o País foi conduzido pelos seguidores de Milton Friedman. Curiosamente, a consolidação das democracias no sul e no centro do continente americano, defendidas – pelo menos aparentemente – pelas administrações norte-americanas trouxe a rejeição quase generalizada das teses neo-liberais que tentaram exportar.

A sobrevivência do capitalismo durante todo o século XX deveu-se à sua capacidade de adaptação aos tempos modernos. Com efeito, o capitalismo do início do século XIX parece uma caricatura face ao capitalismo do final desse mesmo século. A introdução de leis anti-monopolistas e de defesa do consumidor, a par da institucionalização do sindicalismo e do crescente respeito pelos direitos dos trabalhadores, processo liderado pelos países do norte da Europa, vieram dar um rosto humano ao capitalismo e torná-lo atraente aos olhos do mundo.

Pelo contrário, a ausência de democracia matou todas as hipóteses de reforma dos países comunistas. O colapso da União Soviética e dos países satélites foi o epílogo natural da ausência de mercado, da livre iniciativa e dos direitos políticos. Contudo, quem leu o fenómeno como a mera vitória do capitalismo sobre o comunismo errou redondamente na análise. Na verdade, não há apenas um capitalismo, mas muitas versões, bem diferentes umas das outras. O capitalismo norte-americano não é seguramente igual ao europeu e nenhum destes é igual ao capitalismo do outrora Império do Meio.

O advento do século XXI e da Globalização trouxe, na minha opinião, algum retrocesso civilizacional por via da chegada ao mercado mundial de um concorrente do terceiro-mundo de dimensão planetária, com uma população que corresponde a 1/5 da população mundial, o dobro da europeia e quatro vezes a dos Estados Unidos da América. A regulação do mercado construída durante mais de um século tem vindo a regredir para se poder ajustar a um concorrente que veio introduzir uma economia de mercado sem democracia. E se há lição que a história nos ensinou é que o pior inimigo da regulação do mercado é a ausência de democracia.

O aparente êxito económico chinês, baseado na ausência de direitos sociais e políticos e na desregulação do mercado, tem vindo a ser apresentado ao mundo como o paradigma do capitalismo do século XXI. E como queremos seguir o “êxito” chinês, com crescimento económico de dois dígitos, como os economistas fazem questão de nos recordar até à exaustão, assistimos à adopção de políticas que visam desmantelar progressivamente o estado social e reintroduzir legislações laborais tidas como obsoletas há dezenas de anos. A chamada flexisegurança, que implica que os trabalhadores tenham de trabalhar mais de 60 horas semanais nalgumas épocas do ano, é um dos exotismos da Globalização que o tempo se encarregará de demonstrar ser um erro. Embora não seja uma linha recta, a história não volta para trás.

A ideia é tanto mais abstrusa quando os mesmos governos que defendem a flexisegurança são os mesmos que se dizem preocupados com a baixa natalidade. Ora, não há família que resista a horários de trabalho semanais de 60 ou mais horas. No limite, a partir de agora, ou as pessoas têm emprego ou têm filhos. E como não podem prescindir do emprego, terão de prescindir dos filhos, que passarão a ser um luxo dos ricos ou um vício dos indigentes sem emprego. As consequências a prazo destas políticas de discutível alcance conjuntural serão um País de velhos, com reformas cada vez mais miseráveis. Basta utilizar as fórmulas da Segurança Social do inenarrável ministro Vieira da Silva para perceber, já hoje, que estamos (quase) todos a caminho de uma deprimente indigência na velhice.

Voltemos à Globalização e aos mercados. Como referi anteriormente, o acesso aos mercados sempre foi condicionado por ser vital para a sobrevivência das comunidades. Na minha opinião, continua a sê-lo. A economia de proximidade continua a ser vital em caso de guerra, epidemia, crise energética ou logística. A ideia de que nada disto irá ocorrer no futuro é um erro que terá inevitavelmente consequências catastróficas no futuro. A questão não é se estas crises irão acontecer, mas quando irão acontecer.

Recordo que há poucos meses, Portugal esteve à beira da paralisação total e da rotura alimentar, após alguns dias de paralisação dos transportes rodoviários. Pergunto: o que aconteceria se a paralisação durasse mais uma semana? Sem combustíveis para se deslocarem e sem alimentos nos supermercados para se abastecerem, as pessoas teriam vivido uma situação de pânico generalizado. Escapámos por pouco, mas como tudo se resolveu a tempo, mesmo por um triz, não aprendemos a lição e nada faremos para precaver este tipo de situações.

Um mercado globalizado pode implicar que um País abdique por completo de determinadas produções, mesmo agrícolas. Em Portugal, por exemplo, os governos têm defendido a ideia de que a produção de cereais é inviável, uma vez que outros países têm níveis de produção por hectare que são o dobro ou o triplo. Contudo, pergunto: o que comeremos nós em caso de crise internacional, se ficamos completamente dependentes do exterior? No meu ponto de vista, nenhum País deve prescindir de uma produção agrícola mínima de segurança, que permita às populações sobreviver durante alguns meses, em caso de crise, ainda que a produtividade dos solos ou as técnicas de cultivo não permitam produtividades que tornem as culturas competitivas num mundo globalizado.

Do mesmo modo, considero extremamente perigoso a inexistência de limitações aos fluxos financeiros internacionais. O caminho não é fácil, sem a criação de um regulador global para regular o mercado global. Os riscos deste modelo de Globalização estão à vista, não só com a crise do subprime nos Estados unidos da América, mas também com a actual instabilidade dos mercados petrolíferos. A elevada transferência de fundos financeiros de uma zona para outra do mundo, de uma área accionista para outra ou de uma matéria-prima para outra, sobretudo, se for efectuada num curto espaço de tempo, pode arruinar empresas, países ou uma zona do globo, de um dia para o outro.

Os especialistas têm avisado que a economia norte-americana está fortemente dependente dos fluxos financeiros chineses, que têm financiado, até agora, o seu monumental défice externo. O que acontecerá se ocorrer uma crise internacional, ninguém se atreve a prever e poucos ousam mesmo admitir este cenário. Ora, o bem-estar e os empregos de biliões de pessoas não podem estar dependentes dos humores ou da ganância dos especuladores internacionais.

Por outro lado, a exemplo das leis anti-monopolistas criadas no século XX para regular os mercados, considero que também a expansão sem limite dos grandes grupos económicos é contrária ao interesse dos mercados e dos consumidores. A existência de um número restrito de empresas dominantes numa determinada área de mercado, muitas vezes utilizando regras e tarifários idênticos, tem de ser combatida energicamente. No fundo, esta pseudo-concorrência que traz lucros milionários para gestores e grandes accionistas não passa de versões modernas e subtis de monopolismo, que penalizam fortemente os consumidores. Que interessa a estes haver 4 ou 5 empresas num determinado sector de mercado, se utilizam as mesmas regras e preços idênticos? Neste caso, a opção de escolha do consumidor é uma falsa escolha.

Os avisos estão aí, só não vê quem não quer ver. Os mercados, sejam financeiros ou de mercadorias, têm de ser pensados e regulados na óptica da defesa do consumidor e não no interesse das multinacionais e dos especuladores internacionais. A Globalização está no seu início e só tem dois caminhos: ou se reforma rapidamente para responder ao interesse dos cidadãos ou prossegue deslumbrada com a economia de casino e o paradigma chinês e irá colapsar estrondosamente. A economia mundial só poderá globalizar-se de forma duradoura se criar portas de segurança e mecanismos tampão contra a especulação e as abusivas posições dominantes de mercado. Estivemos (estamos?) a um passo de uma crise mundial de consequências imprevisíveis. Pode não haver uma segunda oportunidade.

Mário Lopes, in Jornal Tinta Fresca (Foi mantida a ortografia original)

Mário Lopes é Proprietário/Editor e Diretor do Jornal Tinta Fresca, do concelho de Alcobaça

Governos nacionais, cidadãos globais

Nada é mais perigoso para a globalização do que o enorme défice de governação – a disparidade perigosa entre o âmbito nacional da responsabilidade política e a natureza global dos mercados de bens, capitais e muitos serviços – que se acentuou nas últimas décadas. Quando os mercados transcendem a regulamentação nacional, tal como acontece actualmente com a globalização financeira, o resultado traduz-se em deficiências de mercado, em instabilidade e em situações de crise. Mas impor a actividade de regulamentação a sistemas de administração supranacionais, como a Organização Mundial do Comércio ou a Comissão Europeia, poderá resultar em défice democrático e em perda de legitimidade.


Como se poderá colmatar este défice de governação? Uma das opções assenta no restabelecimento do controlo democrático nacional sobre os mercados globais. Trata-se de uma medida difícil com sabor a proteccionismo, mas não é impossível, nem caminha necessariamente no sentido oposto a uma globalização construtiva. Tal como defendo no meu livro intitulado The Globalization Paradox (O Paradoxo da Globalização, ndt.), o funcionamento da economia global iria melhorar caso se alargasse o campo de acção aos governos nacionais, no sentido de manterem a diversidade regulamentar e de reconstruírem os desgastados acordos sociais.


Em vez disso, as elites políticas (e a maioria dos economistas) são a favor de um fortalecimento cuja denominação eufemística é "governação global". De acordo com este ponto de vista, a aplicação de reformas no sentido de melhorar a eficácia do G-20, aumentar a representatividade do Conselho Executivo do Fundo Monetário Internacional, e restringir as normas relativas aos capitais estabelecidas pelo Comité de Basileia sobre Supervisão seria suficiente para proporcionar um suporte institucional seguro para a economia global.


Mas o problema não reside apenas no facto de estas instituições globais se manterem frágeis. Assenta também no facto de serem órgãos intergovernamentais – um conjunto de Estados-membros, em vez de agentes de cidadãos globais. Uma vez que a sua responsabilidade perante os eleitores nacionais é indirecta e incerta, não geram a filiação política – nem, por conseguinte, a legitimidade – exigida pelas instituições verdadeiramente representativas. Na verdade, as dificuldades da União Europeia são reveladoras dos limites da construção da comunidade política transnacional, mesmo entre um conjunto relativamente limitado e semelhante de países.


Em última instância, a responsabilidade circunscreve-se aos parlamentos e executivos nacionais. Durante a crise financeira, foram os governos nacionais que socorreram os bancos e as empresas, recapitalizaram o sistema financeiro, garantiram as dívidas, aliviaram a pressão sobre a liquidez, estimularam a economia e pagaram os subsídios de desemprego e pensões sociais – e assumiram a culpa por tudo o que correu mal. Nas memoráveis palavras do antigo governador do Banco de Inglaterra, Mervyn King, os bancos globais são "internacionais em vida, mas nacionais na morte".


Contudo, talvez haja uma outra via que aceite a autoridade dos governos nacionais, mas que tenha por objectivo a reorientação dos interesses nacionais num sentido mais global. O progresso através desta via exige que os cidadãos "nacionais" comecem a considerar-se cada vez mais como cidadãos "globais", com interesses que se estendem além das fronteiras dos seus Estados. Os governos nacionais têm o dever de responder ?perante os seus cidadãos, pelo menos em princípio. Assim, quanto mais global for o sentido dos interesses destes cidadãos, maior será a responsabilidade global da política nacional.


Isto pode parecer uma utopia, mas já há algum tempo que assistimos a acções desenvolvidas neste sentido. A campanha global para a redução do endividamento dos países pobres foi liderada por organizações não-governamentais, que conseguiram mobilizar jovens dos países ricos para exercer pressão sobre os seus governos.


As empresas multinacionais estão bem cientes da eficácia deste tipo de campanhas de cidadãos, tendo sido obrigadas a aumentar a transparência e a alterar o seu modo de agir relativamente às práticas de trabalho em todo o mundo. Alguns governos perseguiram líderes políticos estrangeiros que cometeram crimes contra os direitos humanos, recebendo um apoio significativo por parte dos seus cidadãos. Nancy Birdsall, presidente do Centro para o Desenvolvimento Global, cita o exemplo de um cidadão ganês que testemunhou perante o Congresso dos EUA, na esperança de convencer as autoridades norte-americanas a pressionar o Banco Mundial no sentido de alterar a sua posição relativamente às taxas de utilização em África.


Estes esforços, de perspectiva ascendente, para "globalizar" os governos nacionais têm melhores condições para afectar as políticas ambientais, especialmente as que visam atenuar as alterações climáticas – que são o problema global de solução mais difícil. Curiosamente, algumas das mais importantes iniciativas para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e promover o crescimento verde são fruto de pressões locais.


Andrew Steer, presidente do World Resources Institute, salienta que mais de 50 países em desenvolvimento estão actualmente a implementar políticas onerosas para reduzir as alterações climáticas. Do ponto de vista do interesse nacional, esta acção não faz qualquer sentido, dada a natureza global do problema.


Algumas destas políticas são motivadas pelo desejo de conseguir uma vantagem competitiva, como é o caso do apoio às indústrias verdes por parte da China. Mas, se os eleitores possuírem uma consciência global e ambiental, uma boa política climática poderá também ser uma boa política.


Consideremos, por exemplo, a Califórnia que, no início deste ano, lançou um sistema de limitação e comércio, que, até 2020, visa reduzir as emissões de carbono para os níveis registados em 1990. Embora não se tenha verificado uma acção global em matéria de fixação de valores-limite para as emissões, alguns grupos ambientalistas e cidadãos preocupados exerceram pressão para que a medida fosse aceite, sobrepondo-se à oposição de grupos empresariais e, em 2006, o então governador republicano do estado, Arnold Schwarzenegger, aprovou a lei. Caso esta medida se revele bem-sucedida e se mantenha popular, poderá tornar-se um modelo para todo o país.


Os dados das sondagens globais de opinião, como a World Values ??Survey, indicam que há ainda um longo caminho a percorrer: a auto-percepção de cidadania global tem tendência a permanecer 5 a 20 pontos percentuais abaixo da cidadania nacional. Mas a diferença é menor no que diz respeito aos jovens, às pessoas mais instruídas e às classes profissionais. Aqueles que consideram estar no topo da estrutura de classe têm uma consciência global significativamente maior do que aqueles que se consideram parte integrante das classes mais baixas.


É claro que a "cidadania global" será sempre uma metáfora, porque nunca existirá uma comunidade política mundial gerida por um governo mundial. Mas quanto mais pensarmos em nós mesmos como cidadãos globais e, nessa qualidade, expressarmos as nossas preferências aos respectivos governos, menos teremos de perseguir a quimera da governação global.
 
Dani Rodrik, in Público de 13/03/2013 (Foi mantida a ortografia original)

Por Dani Rodrik, professor de Economia Política Internacional na Universidade de Harvard, é autor de The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy (O Paradoxo da Globalização: A Democracia e o Futuro da Economia Mundial)

Tradução: Teresa Bettencourt/Project Syndicate
 

Outra tradução em: https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2013/3/14/governos-nacionais-cidadaos-globais





Belo texto!... Mas quais as consequências de nos vermos como cidadãos globais? O tecnicismo e o cientificismo em que estamos mergulhados, não tenderá cada vez mais a um processo de desumanização das relações humanas? Vermo-nos como cidadãos globais não levará ao perigo da construção de uma sociedade com perda de identidade cultural? E se a todas estas perguntas, juntarmos o problema de conseguirmos arranjar reais mecanismos de justiça para a punição exemplar de crimes e abusos de todo o tipo?


O que será do futuro? Só o futuro o dirá!...


Acerca do texto aqui publicado, devo também acrescentar, que “Um dos grandes mandamentos da ciência é “desconfiar das afirmações das sumidades” (os cientistas, na sua qualidade de primatas, por conseguinte propensos a hierarquias de domínio, nem sempre lhe obedecem), pois muitas dessas afirmações revelam-se tristemente erradas. As sumidades têm de provar as suas asserções como outra pessoa qualquer. Esta independência da ciência, a sua incapacidade ocasional de aceitar a sabedoria convencional, torna-a perigosa para doutrinas menos autocríticas ou com pretensões de certeza.”

 
Carl Sagan, in “Um Mundo Infestado de Demónios”, paginas 50 e 51.


 
 

A crise e as crianças


 
Não é novidade para ninguém que a crise económica, financeira ou social afecta, em primeiro lugar, as populações mais vulneráveis. Nestas, incluem-se as crianças, em especial as que pertencem a meios desfavorecidos ou que têm alguma forma de deficiência ou handicap.

Acresce que estes “meios desfavorecidos” não são apenas os tradicionais, mas abrangem hoje muitas famílias anteriormente pertencentes a uma classe social com algum (mesmo que pequeno) desafogo e que, agora, estão estranguladas pelo desemprego, cortes sociais, aumentos incomportáveis da carga fiscal e das múltiplas falências.

Convém, no entanto, ter presentes três factos: um, é que sempre houve, ao longo da História, períodos de crise. Portugal, durante a II Grande Guerra, por exemplo, apesar de não ter estado directamente envolvido no conflito, passou tempos muito difíceis, com racionamentos de leite e de pão e com todo o tipo de restrições ao bem-estar. Segundo facto: a actual crise “apanha” a população portuguesa num estádio de desenvolvimento muito bom, com capacidade, portanto, de lhe fazer face. Mesmo com a redução do poder de compra ou de algumas benesses, e perspectivando-se um certo grau de empobrecimento geral, iremos, na pior das hipóteses, ficar muito acima do nível de vida da esmagadora maioria da população mundial. Terceiro facto: as crises servem também para reflexão, definição de novos paradigmas, para mudança e crescimento, e para nos libertarmos de erros e falhas passadas, de modo a que, pelo menos estes, não se voltem a repetir.

Recusando qualquer argumento arrogante e insuportável, do tipo “aguenta, aguenta”, e criticando, sem cerimónias, a insensibilidade social deste Governo, que, para mim, tem uma agenda política muito bem definida, para lá de uma incompetência igualmente explícita, estou, de qualquer forma, em crer que a actual crise poderá ser uma oportunidade para as famílias repensarem as suas prioridades, designadamente os seus hábitos de consumo, e, também, para evitarem uma coisa terrível: o desperdício.

Por outro lado, pode servir para ensinar as crianças a distinguir entre o que é essencial e o que é acessório: por exemplo, uma ida a um parque colher folhas secas, fazer colagens ou apanhar pedras e pintar, ou ir a uma praia apanhar conchas, podem ser actividades de “custo zero” que dão prazer e conhecimento, entretenimento e gozo e que não se compram. Ou seja, têm um grande valor, mas um pequeno preço.

Com excepção para as famílias em situações-limite – e que são cada vez mais –, que poderão vir a passar por dificuldades extremas e carências em bens essenciais, a crise pode ser uma forma para reflectir sobre o que se gasta em consumos desnecessários e permitir às crianças valorizar o que têm e perceber que não são mais felizes por terem mais roupa ou brinquedos.

Vale também a pena explicar aos nossos filhos que a crise resulta, em parte, da ganância do “quero tudo, já!”, que atingiu muitas pessoas, levando-as a pensar que eram deuses a quem tudo era devido, e que desembocou numa escalada de consumo de bens apenas para ostentar um determinado estilo de vida ou mero show-off. Também será uma boa oportunidade (dependendo da idade, claro) para explicar, com verdade, mas sem entrar em pormenores ou áreas que as crianças não compreendam, as causas e as consequências da crise e explicar a interdependência dos vários fenómenos sociais e políticos. E de como, se não lutarem por uma sociedade democrática e equitativa, de que são exemplo as escandinavas, irão ter um país empobrecido, desigual, iníquo e injusto.

Mas se, por um lado, é importante que as crianças percebam que os pais têm menos poder de compra, por outro, também devem sentir que isso não vai afectar o seu bem-estar ou as suas necessidades básicas. O impacte psicológico da crise será maior se os pais se lamuriarem e vitimizarem perante as crianças – estas têm de sentir que têm pais que conduzem o barco e que os protegem e promovem segurança.

Encaremos a crise com lucidez, esperança e vontade de a vencer. O derrotismo, a desilusão e o pessimismo só servirão para aumentar a nossa infelicidade. Para isso, já basta a própria crise…

Mário Cordeiro, in Púbico de  21/02/2013 (Foi mantida a ortografia original)
O autor é médico e professor de Pediatria.

O segredo do Homo sapiens e a governação global



A teoria da evolução de Darwin aplica-se a todos os organismos vivos, logo ao Homo sapiens. Ao longo da história da vida na Terra, a evolução das espécies deu-se por meio de um processo de adaptação ao meio ambiente movido pela selecção das mutações genéticas com mais vantagens de sobrevivência e reprodução. Consequentemente, os principais traços distintivos de cada espécie têm uma “explicação” no processo de selecção natural, que pode ser decifrada com maior ou menor dificuldade.

No caso do Homo sapiens, há várias características notáveis cuja emergência podemos tentar explicar. Entre as principais destaca-se o bipedismo, a linguagem, a nudez (ou ausência de pelo, única entre os primatas), o grande volume da massa encefálica, que permite a consciência, formas superiores de inteligência e abstracção, o desenvolvimento cultural e a "eussociabilidade", ou seja, uma forma avançada de sociabilidade que incluiu a sobreposição de gerações, a cooperação, o altruísmo e a divisão de tarefas no mesmo grupo.

Todas estão relacionadas entre si e têm explicações fascinantes. Porém, a mais notável, e a que provavelmente contém o segredo da nossa natureza e do nosso sucesso como espécie biológica, é a fortíssima encefalização que ocorreu na evolução desde o Australopitecus afarensis, de há mais de três milhões de anos, até ao Homo sapiens. Num período de tempo de cerca de três milhões de anos o volume do cérebro mais do que triplicou, enquanto o peso aumentou apenas de um terço.

Pertencer, ser fiel e proteger o grupo, lutar pela ascensão no seu seio e combater os grupos adversários é um traço essencial da nossa natureza.

Quais as “razões” de selecção natural que motivaram esta extraordinária evolução? Foram razões muito fortes, porque o crescimento da massa encefálica exigiu uma alimentação mais rica para assegurar o grande consumo de energia de um cérebro de maiores dimensões. Com apenas 2% do peso do corpo, o cérebro consome cerca de 20% da energia necessária à vida humana.

Pertencer, ser fiel e proteger o grupo, lutar pela ascensão no seu seio e combater os grupos adversários é um traço essencial da nossa natureza.

Quais foram então as pressões de selecção natural que promoveram o crescimento do volume do cérebro na linhagem evolutiva do Homo sapiens? Provavelmente foram as vantagens para a sobrevivência e reprodução de uma vida social progressivamente mais interactiva e complexa, baseada na construção de alianças e responsabilidades colectivas no grupo para actividades como a caça, a partilha de comida, a protecção e as lutas com os grupos rivais pela conquista de território e de recursos escassos.

Todos os primatas são animais sociáveis, mas os hominídeos desenvolveram de forma extraordinária a sociabilidade nos grupos em que viviam, tipicamente com 20 a 100 elementos. O extraordinário desenvolvimento do cérebro criou vantagens reprodutivas ao permitir encontrar soluções para os crescentes desafios sociais intragrupos e intergrupos.

A forte identificação com o grupo era acompanhada por uma profunda desconfiança e antagonismo em relação àqueles que pertenciam a outros grupos. Um exemplo extremo desta agressividade encontra-se ainda em algumas tribos primitivas da etnia asmat da Papuásia-Nova Guiné, onde membros das outras tribos são identificados como “aqueles que se comem”.

Pertencer, ser fiel e proteger o grupo, lutar pela ascensão no seu seio e combater os grupos adversários é um traço essencial da nossa natureza, que provavelmente esteve na origem da emergência do Homo sapiens e permanece na actualidade. A rede de grupos religiosos, políticos, sociais e económicos das sociedades modernas desempenham o mesmo papel psicológico do tribalismo. Nesta rede, a estrutura dominante são os Estados-nações soberanos cujos Governos têm jurisdição a nível local e nacional, mas que competem entre si activamente e por vezes violentamente a nível global. Neste paradigma, o valor supremo são os interesses nacionais dos Estados-nações.

Criámos uma problemática global e caminhamos para uma sociedade global através da globalização, mas será que pertencemos efectivamente a uma tribo global?

Entretanto, as culturas e as civilizações desenvolveram-se e há um problema novo. Surgiram problemáticas de natureza global, tais como as alterações globais sistémicas (mudança climática antropogénica, redução do ozono estratosférico) e cumulativas (crescente escassez de água e de outros recursos naturais, poluição da água, dos oceanos e dos solos, desertificação e perda de biodiversidade). As sociedades humanas, através das suas múltiplas e complexas actividades, interferem actualmente com o sistema Terra de formas tão profundas, continuadas e extensas, que ameaçam os seus vários subsistemas e os processos bióticos e abióticos de que depende a sustentabilidade daquelas sociedades.

Criámos uma problemática global e caminhamos para uma sociedade global através da globalização, mas será que pertencemos efectivamente a uma tribo global? Por outras palavras, em que medida praticamos nessa tribo a protecção e defesa que caracteriza o nosso comportamento nos Estados-nações e nos outros grupos a que pertencemos? Todas as tribos têm tribos adversárias, mas a global não tem. Será que sabemos proteger e defender um grupo humano que não tem adversários?

Não há, teoricamente, adversários, porque todos nós pertencemos a esse mesmo grupo, o que, do ponto de vista da história evolutiva do Homo sapiens, é uma situação nova e inesperada. Porém, a qualidade do nosso futuro comum depende de nos adaptarmos à nova realidade. Não temos a ameaça de ataque de uma civilização extraterrestre, a ameaça vem do nosso próprio comportamento individual e colectivo.

O sistema das Nações Unidas é um fórum para as questões internacionais da paz, da segurança, dos direitos humanos, do desenvolvimento social e económico e do ambiente, mas, exceptuando o Conselho de Segurança, as decisões têm de ser consensuais, o que permite preservar os interesses nacionais dos Estados-membros.

Não é possível atingir a sustentabilidade do desenvolvimento à escala global sem sobrepor os interesses da humanidade aos interesses nacionais, quando necessário. Para construir a sustentabilidade é indispensável instituir novas formas de governação global que criem um sistema financeiro e económico capaz de promover a equidade, a gestão sustentável dos recursos naturais e de travar a degradação ambiental e a perda de biodiversidade.

É urgente substituir a directriz de Patrick Geddes “pensar globalmente e actuar localmente” por “pensar e actuar localmente e globalmente”.
Filipe Duarte Santos, in PÚBLICO, de 27/02/2013 (Foi mantida a ortografia original)





Filipe Duarte Santos é Professor Catedrático da Faculdade de Ciências de Lisboa, Unidade de Investigação: SIM
   




Mas hoje não devo ficar só por aqui. Também vos trago outra opinião, a de Beatriz Talegón, uma jovem com preocupações realmente GLOBAIS.


Beatriz Talegón, líder da Juventude Internacional Socialista, envergonhou os líderes socialistas mundiais com um discurso que incendiou as redes sociais. Na sua intervenção, proferiu uma dura crítica à Internacional Socialista que acusa de não trabalhar para os jovens e de andar reunida em hotéis de cinco estrelas a tentar encontrar soluções para a crise.
"Como se pode liderar uma revolução a partir de um hotel de cinco estrelas em Cascais, chegando em carros de luxo? Podemos dizer aos jovens que os compreendemos, que sentimos a sua dor aqui dentro, no meio deste luxo?". Estas perguntas de Beatriz Talegón colocaram o mundo socialista e as redes sociais em polvorosa. O vídeo da sua intervenção durante a reunião da Internacional Socialista (IS) em Cascais, na semana passada, tornou-se viral em Espanha, está a ser muito partilhado em Portugal e chegou à América Latina através das redes sociais, tendo já sido visto por mais de cem mil pessoas na Internet.
Esta é também uma excelente opinião a não perder...