As grandes instituições que norteiam as relações entre os homens
fundaram-se há centenas ou mesmo milhares de anos. A existência do mercado é
uma dessas grandes instituições. Nele se cruzam os interesses de quem procura e
quem vende ou troca, satisfazendo os interesses de ambos, se funcionar bem. O
mercado é também o ponto de encontro de troca de informações entre o consumidor
e o produtor. A este cabe detectar as necessidades do mercado e satisfazer
essas necessidades, recebendo em troca a correspondente mais-valia. Simples.
O maior erro do marxismo foi decretar o fim do mercado como forma de eliminar a
exploração do homem pelo homem, aliás, ignorando outro grande princípio das
relações humanas: os homens não são iguais e, como tal, a cooperação nunca se traduzirá
em ganhos iguais. A igualdade utópica não acontece no capitalismo como não
aconteceu durante os regimes comunistas nem em nenhum outro, no passado. O mito
da igualdade entre os homens não passou disso mesmo: um mito.
Da mesma forma, não há memória de um mercado sem autoridade. Bem ou mal, justa
ou injustamente, os mercados sempre foram regulados por alguém, seja o senhor
feudal, o alcaide ou o rei. Também o acesso aos mercados foi sempre limitado.
Os interesses locais, regionais ou nacionais sempre se impuseram aos interesses
exteriores. A não ser que, por força de acordos ou pela força da espada, os
interesses das comunidades fossem subjugados diante de interesses maiores.
A Globalização não pode esquecer os erros do marxismo nem os outros erros
que a história registou. As teorias de engenharia social que não respeitem os
grandes princípios que fundaram a Humanidade estão irremediavelmente votados ao
fracasso. Sejam o marxismo, o neoliberalismo económico ou uma certa visão de
Globalização não regulada. Os arautos do marxismo viram o seu sonho ruir em
1989, quando Muro de Berlim lhes caiu estrondosamente em cima, depois de
décadas a negar o óbvio: não há sociedade funcional sem mercado e sem livre
iniciativa.
Também os fundamentalistas do mercado viram as suas teses reprovadas pela
realidade, perante a crise de 1929 nos Estados Unidos ou as experiências
ultra-liberais das últimas décadas na América Latina, que culminaram,
nomeadamente, com o estrondoso colapso da Argentina, que só muito a custo tem
recuperado da falência económica a que o País foi conduzido pelos seguidores de
Milton Friedman. Curiosamente, a consolidação das democracias no sul e no
centro do continente americano, defendidas – pelo menos aparentemente – pelas
administrações norte-americanas trouxe a rejeição quase generalizada das teses
neo-liberais que tentaram exportar.
A sobrevivência do capitalismo durante todo o século XX deveu-se à sua
capacidade de adaptação aos tempos modernos. Com efeito, o capitalismo do
início do século XIX parece uma caricatura face ao capitalismo do final desse
mesmo século. A introdução de leis anti-monopolistas e de defesa do consumidor,
a par da institucionalização do sindicalismo e do crescente respeito pelos
direitos dos trabalhadores, processo liderado pelos países do norte da Europa,
vieram dar um rosto humano ao capitalismo e torná-lo atraente aos olhos do
mundo.
Pelo contrário, a ausência de democracia matou todas as hipóteses de reforma
dos países comunistas. O colapso da União Soviética e dos países satélites foi
o epílogo natural da ausência de mercado, da livre iniciativa e dos direitos
políticos. Contudo, quem leu o fenómeno como a mera vitória do capitalismo
sobre o comunismo errou redondamente na análise. Na verdade, não há apenas um capitalismo,
mas muitas versões, bem diferentes umas das outras. O capitalismo
norte-americano não é seguramente igual ao europeu e nenhum destes é igual ao
capitalismo do outrora Império do Meio.
O advento do século XXI e da Globalização trouxe, na minha opinião, algum
retrocesso civilizacional por via da chegada ao mercado mundial de um
concorrente do terceiro-mundo de dimensão planetária, com uma população que
corresponde a 1/5 da população mundial, o dobro da europeia e quatro vezes a
dos Estados Unidos da América. A regulação do mercado construída durante mais
de um século tem vindo a regredir para se poder ajustar a um concorrente que
veio introduzir uma economia de mercado sem democracia. E se há lição que a
história nos ensinou é que o pior inimigo da regulação do mercado é a ausência
de democracia.
O aparente êxito económico chinês, baseado na ausência de direitos sociais e
políticos e na desregulação do mercado, tem vindo a ser apresentado ao mundo
como o paradigma do capitalismo do século XXI. E como queremos seguir o “êxito”
chinês, com crescimento económico de dois dígitos, como os economistas fazem
questão de nos recordar até à exaustão, assistimos à adopção de políticas que
visam desmantelar progressivamente o estado social e reintroduzir legislações
laborais tidas como obsoletas há dezenas de anos. A chamada flexisegurança, que
implica que os trabalhadores tenham de trabalhar mais de 60 horas semanais
nalgumas épocas do ano, é um dos exotismos da Globalização que o tempo se
encarregará de demonstrar ser um erro. Embora não seja uma linha recta, a
história não volta para trás.
A ideia é tanto mais abstrusa quando os mesmos governos que defendem a
flexisegurança são os mesmos que se dizem preocupados com a baixa natalidade.
Ora, não há família que resista a horários de trabalho semanais de 60 ou mais
horas. No limite, a partir de agora, ou as pessoas têm emprego ou têm filhos. E
como não podem prescindir do emprego, terão de prescindir dos filhos, que
passarão a ser um luxo dos ricos ou um vício dos indigentes sem emprego. As
consequências a prazo destas políticas de discutível alcance conjuntural serão
um País de velhos, com reformas cada vez mais miseráveis. Basta utilizar as
fórmulas da Segurança Social do inenarrável ministro Vieira da Silva para
perceber, já hoje, que estamos (quase) todos a caminho de uma deprimente
indigência na velhice.
Voltemos à Globalização e aos mercados. Como referi anteriormente, o acesso aos
mercados sempre foi condicionado por ser vital para a sobrevivência das comunidades.
Na minha opinião, continua a sê-lo. A economia de proximidade continua a ser
vital em caso de guerra, epidemia, crise energética ou logística. A ideia de
que nada disto irá ocorrer no futuro é um erro que terá inevitavelmente
consequências catastróficas no futuro. A questão não é se estas crises irão
acontecer, mas quando irão acontecer.
Recordo que há poucos meses, Portugal esteve à beira da paralisação total e da
rotura alimentar, após alguns dias de paralisação dos transportes rodoviários.
Pergunto: o que aconteceria se a paralisação durasse mais uma semana? Sem
combustíveis para se deslocarem e sem alimentos nos supermercados para se
abastecerem, as pessoas teriam vivido uma situação de pânico generalizado.
Escapámos por pouco, mas como tudo se resolveu a tempo, mesmo por um triz, não
aprendemos a lição e nada faremos para precaver este tipo de situações.
Um mercado globalizado pode implicar que um País abdique por completo de
determinadas produções, mesmo agrícolas. Em Portugal, por exemplo, os governos
têm defendido a ideia de que a produção de cereais é inviável, uma vez que
outros países têm níveis de produção por hectare que são o dobro ou o triplo.
Contudo, pergunto: o que comeremos nós em caso de crise internacional, se
ficamos completamente dependentes do exterior? No meu ponto de vista, nenhum
País deve prescindir de uma produção agrícola mínima de segurança, que permita
às populações sobreviver durante alguns meses, em caso de crise, ainda que a
produtividade dos solos ou as técnicas de cultivo não permitam produtividades
que tornem as culturas competitivas num mundo globalizado.
Do mesmo modo, considero extremamente perigoso a inexistência de limitações aos
fluxos financeiros internacionais. O caminho não é fácil, sem a criação de um
regulador global para regular o mercado global. Os riscos deste modelo de
Globalização estão à vista, não só com a crise do subprime nos Estados unidos
da América, mas também com a actual instabilidade dos mercados petrolíferos. A
elevada transferência de fundos financeiros de uma zona para outra do mundo, de
uma área accionista para outra ou de uma matéria-prima para outra, sobretudo,
se for efectuada num curto espaço de tempo, pode arruinar empresas, países ou
uma zona do globo, de um dia para o outro.
Os especialistas têm avisado que a economia norte-americana está fortemente
dependente dos fluxos financeiros chineses, que têm financiado, até agora, o
seu monumental défice externo. O que acontecerá se ocorrer uma crise
internacional, ninguém se atreve a prever e poucos ousam mesmo admitir este
cenário. Ora, o bem-estar e os empregos de biliões de pessoas não podem estar
dependentes dos humores ou da ganância dos especuladores internacionais.
Por outro lado, a exemplo das leis anti-monopolistas criadas no século XX para
regular os mercados, considero que também a expansão sem limite dos grandes
grupos económicos é contrária ao interesse dos mercados e dos consumidores. A
existência de um número restrito de empresas dominantes numa determinada área de
mercado, muitas vezes utilizando regras e tarifários idênticos, tem de ser
combatida energicamente. No fundo, esta pseudo-concorrência que traz lucros
milionários para gestores e grandes accionistas não passa de versões modernas e
subtis de monopolismo, que penalizam fortemente os consumidores. Que interessa
a estes haver 4 ou 5 empresas num determinado sector de mercado, se utilizam as
mesmas regras e preços idênticos? Neste caso, a opção de escolha do consumidor
é uma falsa escolha.
Os avisos estão aí, só não vê quem não quer ver. Os mercados, sejam financeiros
ou de mercadorias, têm de ser pensados e regulados na óptica da defesa do
consumidor e não no interesse das multinacionais e dos especuladores
internacionais. A Globalização está no seu início e só tem dois caminhos: ou se
reforma rapidamente para responder ao interesse dos cidadãos ou prossegue
deslumbrada com a economia de casino e o paradigma chinês e irá colapsar
estrondosamente. A economia mundial só poderá globalizar-se de forma duradoura
se criar portas de segurança e mecanismos tampão contra a especulação e as
abusivas posições dominantes de mercado. Estivemos (estamos?) a um passo de uma
crise mundial de consequências imprevisíveis. Pode não haver uma segunda
oportunidade.