Romantismo
do Desespero
“Mais
ce n’est pas justement à un surcroît de rêve, entretenu par de célèbres
esthètes de fausses prophéties, que l’on doit ce romantisme du désespoir?”
Jean-Marie Creuzeau (1)
Na vida, como na sua
expressão literária e artística, o mundo dá-nos a impressão de ter perdido a
alma. Mas, porque a alma está lá, o mundo dá-nos também a impressão de se
contorcer em vascas de desespero. E, como o desespero é mau conselheiro, não
admira que o mundo se esteja a transformar também ou numa leoneira de ferras,
ou numa estância de loucos.
A paixão lúdica, tão
característica do nosso tempo, vem daí. Nasce deste terrível estado de
espírito, a que chegou o homem sem Deus, e se pode comparar à inquietação da
agulha magnética, depois de ter perdido o norte. A agulha nem sente nem pensa.
Se sentisse e pensasse, para ela, o facto de ter perdido o norte, seria, ao
mesmo tempo, o desespero e a loucura. Ora, o homem moderno vai perdendo o
sentido do sobrenatural. E é também nessa medida que ele se vai precipitando no
desespero e na loucura. Desespero, até ao suicídio; loucura até ao absurdo,
tanto no pensar, como no viver.
Estou a escrever isto, e a
pensar em Lucrécio, cujo ateísmo o lançou, precisamente, no suicídio e na
loucura. E penso, também em Pascal, debruçado sobre o paradoxo humano, paradoxo
feito de grandeza e de miséria – uma grandeza que fala de Deus, que para Si nos
criou; e uma contradição só em Cristo e por Cristo se poderia resolver.
Como diz Pascal, “La connaissance de Dieu sans celle de sa
misére fait-l’orgueil. La connaissance de sa misére sans celle de Dieu fait de
dásespoir. La connaissance de Jésus-Crist falt le milieu, parce que nous y
trouvons et Dieu et notre misére” (2). Mas quem é Jesus Cristo, para essas
pobres vítimas do romantismo do desespero, tão frequentes no nosso tempo?
Conduziu-me a estas
reflexões uma breve meditação sobre dois desastres recentes: o que matou James
Dean e o que ia matando Françoise Sagan. Ambos eles exemplificam o romantismo
do desespero, em que o nosso mundo se está a precipitar, e em escala cada vez
mais alarmante. “Dentro do carro, - dizia
Dean – sinto que sou uma estrela”. Era a loucura romântica a roçar pelas
raias da megalomania. E o resultado foi esfacelar-se, ainda rapaz, com o carro
que conduzia à velocidade de 150 quilómetros por hora! “Adoro conduzir com os pés nus”, - dizia Sagan, num acesso ultra-romântico
de exibicionismo patológico. E foi assim que ela, quando conduzia à mesma
velocidade do comparsa americano, por pouco não ia tendo a mesma sorte…
Sente-se, no mundo
contemporâneo, uma fadiga geral, que vai do delírio da acção, até ao “dolce far niente”, como lei suprema da
vida. O meio termo, que é o centro do equilíbrio criador, tornou-se cada vez
mais difícil. A reflexão repousada e atenta supõe um ideal supremo da vida, um
ideal a que todos os outros se devem subordinar. Ora esse ideal supremo é
inconcebível, se o homem não passa de um epifenómeno da matéria, e se todas as
suas acções se confinam, no tempo e no espaço, aos estremos limites da sua
passagem pelo mundo.
Mas o espirito está lá, e,
com ele, estão aspirações incoercíveis de infinito, que o homem pode iludir,
mas não pode experimentar. Daí, antinomias insuperáveis, que solicitam o homem
para fora das linhas clássicas da existência, e o projectam num mundo de sonho,
em que se refunde, afinal, o romantismo do desespero, para onde os estetas de
falsas profecias nos estão a conduzir.
Para o romantismo do
desespero, nem contam as leis eternas de Deus, nem valem as leis de emergência
dos homens. Daí, a rebelião e o azedume, numa atitude constante de desconfiança
e de autodefesa, tão facilmente encontradiça, por exemplo, em todos os filmes,
em que James Dean é protagonista. Estou a pensar em “Fúria de Viver”, “A leste
do Paraíso” e “O Gigante”. São filmes sombrios, feitos à imagem semelhança do
actor, que nem sequer precisou de representar, para aparecer em cena.
Bastou-lhe ser ele, tal e qual o romantismo do desespero o fez.
Em “Fúria de Viver”, James
Dean é um inadaptado incorrigível, na escola e em tudo, e, por isso, um falhado
e um indesejável social. Em “A leste do Paraíso”, a inadaptação e o cinismo
atingem o desespero dentro do próprio lar paterno. E em “O Gigante”, vemo-lo
encarnar o egoísmo cínico do arrivista falhado, no que há de mais profundamente
humano no coração do homem. Creio serem estes os únicos filmes em que James
Dean colaborou, e em todos eles o protagonista se desentranha em gestos
absurdos, ferozmente egoístas, e com total desprezo pela comunidade. O reflexo
da auto-defesa, que corresponde a este criminoso desprezo para com a
comunidade, conduz, pelo seu próprio peso, à constituição de pequenos estados
no estado, ou sejam as sociedades artificiais, que têm o seu paradigma na mania
clubista, quase sempre organizada à imagem e semelhança das lojas maçónicas e
das células comunistas. Havia uma célula natural, que era o lar, prolongado na
amizade de vizinhança e na afinidade das famílias do mesmo sangue. Mas tudo
isto se perdeu, quando se perdeu, o sentido superior da vida. Na sua vez,
surgem as comunidades artificiais, que são os clubes, organizados em seitas de
todas obediências, menos a legítima e nobilitante obediência à autoridade
constituída.
Foi assim que os estetas
de falsas profecias levaram todos os descontentes a trocar a milícia pelo
ergástulo, e a substituir a ordem clássica da paz, que é a tranquilidade na
ordem, pelo romantismo do desespero, que é a desordem definitivamente instalada
na vida de cada um.
Para justificar todo este
artificialismo, que os três filmes de Dean traduziram e talvez pretendessem
legitimar, há quem diga que a coisa se explica pelo desencanto da juventude, em
face da actual sociedade burguesa. Dizem que a juventude tem necessidade de
sonho e que precisa de encontrar, numa sociedade autêntica, o lugar que lhe
pertence. É verdade. Em todo o caso, parece-me que não é este o caminho do
triunfo. Se não me engano, onde os estetas de falsas profecias querem conduzir
a juventude é a um mundo ainda mais aburguesado do que aquele de que se
queixam, visto ser um mundo infra-humano e de irresponsabilidade total. Pelo
menos, é esse o sentido bem marcado nos três filmes de James Dean. E é também
esse o sentido transparente nos dois livros, até hoje dados à estampa, por
Françoise Sagan…
Ora, o futuro de cada um e
o lugar que a cada deve pertencer na vida, não são coisas que venham
burguesmente já feitas pelos outros, sejam os pais ou o Estado. Seria essa a
pior forma de parasitismo burguês. O futuro, deve cada um conquistá-lo, à sua
custa, no esforço constante de cada dia, a caminho de melhor e mais perfeita autorrealização.
Só então, depois da auto-valorizarão, é que o homem se pode considerar com
direitos, que o dever cumprido lhe conquistou. Tudo isto, que é elementar em
ética social, está, porém, de todo em todo ausente, nos filmes de James Dean e
nos livros de Sagan, que, por isso, alinham ao lado do pior e do mais
parasitário burguesismo. Creio que tudo isto é claro como a luz do meio dia,
para quem, em vez da palha das palavras, prefira, como eu, descer até ao
conteúdo das ideias.
Sonho? Sim. É bom sonhar.
Mas é preciso que o sonho se complete com o lastro da realidade. É preciso que
o sonho não seja como moinho sem grão, ou como acção sem finalidade superior. É
preciso que o acréscimo do sonho, alimentado por estetas de falsas profecias,
não dispare no romantismo do desespero, preguiçoso ou anárquico, em que a
juventude se está a precipitar. (3)
O sonho tem o seu lugar.
Mas não basta. Requer-se, também, a tomada de consciência do real, e a certeza
de que a realidade se não limita ao delírio da velocidade, nem no tempo, nem no
espaço. (…) E desta prespectiva, em vez da evasão, no sonho, ou na embriaguez,
que tanto pode ser de whisky, como de exibicionismo, abrem-se outros caminhos,
em que ao homem se oferecem todos os recursos e todas as dimensões de que
precisa, para se poder realizar. Claro está que estou a referir-me aos recursos
da graça, e às dimensões sobrenaturais, que só Cristo nos pode dar. (…)
Pe. Agostinho Veloso, in BROTÉRIA - REVISTA CONTEMPORÂNEA DE
CULTURA, Vol. LXV,
número 4, Outubro de 1957, pp. 291 a 295
(1) Jean-
Creuzeau Marie, James et Françoise, in “ Le Monde Nouveau”, Paris, 12-V-57,
pág. 10.
(2) Pascal,
Les Pensées, n. 527.
(3) Jean-Marie
Creuzeau, James et Françoise, em “Le Monde Nouveau”, Paris, 12-V-57, pág. 10.