Romantismo do Desespero



Como legado de meu pai, herdei uma coleção de velhas revistas “BROTÉRIA”, de edições dos anos 50, que venho lendo aos poucos ao deitar. Um dos últimos artigos lidos foi um estudo/reflexão da sociedade daquela época, cujo tema é "Romantismo do desespero", (BROTÉRIA - REVISTA CONTEMPORÂNEA DE CULTURA, Vol. LXV, número 4, Outubro de 1957, pp. 291-308), do Pe. Agostinho Veloso e que para mim não é mais do que um texto profético que agora se confirma.
Procurei o texto na internet, mas não o encontrei, só aparecendo um registo da sua existência na página web da revista BROTÉRIA, que ainda hoje se edita, mas agora com a designação, BROTÉRIA – CRISTIANISMO E CULTURA.
Por ser o seu conteúdo de enorme atualidade, copiei a primeira parte. É uma excelente reflexão para oferecer, em tempos que a confirmam e que sempre se repetem, e ainda recordar a escrita e o pensar do Pe. Agostinho Veloso, um «Jornalista de garra e verbo camiliano»*.
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Romantismo do Desespero

“Mais ce n’est pas justement à un surcroît de rêve, entretenu par de célèbres esthètes de fausses prophéties, que l’on doit ce romantisme du désespoir?”

                                                                       Jean-Marie Creuzeau (1)

Na vida, como na sua expressão literária e artística, o mundo dá-nos a impressão de ter perdido a alma. Mas, porque a alma está lá, o mundo dá-nos também a impressão de se contorcer em vascas de desespero. E, como o desespero é mau conselheiro, não admira que o mundo se esteja a transformar também ou numa leoneira de ferras, ou numa estância de loucos.

A paixão lúdica, tão característica do nosso tempo, vem daí. Nasce deste terrível estado de espírito, a que chegou o homem sem Deus, e se pode comparar à inquietação da agulha magnética, depois de ter perdido o norte. A agulha nem sente nem pensa. Se sentisse e pensasse, para ela, o facto de ter perdido o norte, seria, ao mesmo tempo, o desespero e a loucura. Ora, o homem moderno vai perdendo o sentido do sobrenatural. E é também nessa medida que ele se vai precipitando no desespero e na loucura. Desespero, até ao suicídio; loucura até ao absurdo, tanto no pensar, como no viver.

Estou a escrever isto, e a pensar em Lucrécio, cujo ateísmo o lançou, precisamente, no suicídio e na loucura. E penso, também em Pascal, debruçado sobre o paradoxo humano, paradoxo feito de grandeza e de miséria – uma grandeza que fala de Deus, que para Si nos criou; e uma contradição só em Cristo e por Cristo se poderia resolver.

Como diz Pascal, “La connaissance de Dieu sans celle de sa misére fait-l’orgueil. La connaissance de sa misére sans celle de Dieu fait de dásespoir. La connaissance de Jésus-Crist falt le milieu, parce que nous y trouvons et Dieu et notre misére” (2). Mas quem é Jesus Cristo, para essas pobres vítimas do romantismo do desespero, tão frequentes no nosso tempo?

Conduziu-me a estas reflexões uma breve meditação sobre dois desastres recentes: o que matou James Dean e o que ia matando Françoise Sagan. Ambos eles exemplificam o romantismo do desespero, em que o nosso mundo se está a precipitar, e em escala cada vez mais alarmante. “Dentro do carro, - dizia Dean – sinto que sou uma estrela”. Era a loucura romântica a roçar pelas raias da megalomania. E o resultado foi esfacelar-se, ainda rapaz, com o carro que conduzia à velocidade de 150 quilómetros por hora! “Adoro conduzir com os pés nus”, - dizia Sagan, num acesso ultra-romântico de exibicionismo patológico. E foi assim que ela, quando conduzia à mesma velocidade do comparsa americano, por pouco não ia tendo a mesma sorte…

Sente-se, no mundo contemporâneo, uma fadiga geral, que vai do delírio da acção, até ao “dolce far niente”, como lei suprema da vida. O meio termo, que é o centro do equilíbrio criador, tornou-se cada vez mais difícil. A reflexão repousada e atenta supõe um ideal supremo da vida, um ideal a que todos os outros se devem subordinar. Ora esse ideal supremo é inconcebível, se o homem não passa de um epifenómeno da matéria, e se todas as suas acções se confinam, no tempo e no espaço, aos estremos limites da sua passagem pelo mundo.

Mas o espirito está lá, e, com ele, estão aspirações incoercíveis de infinito, que o homem pode iludir, mas não pode experimentar. Daí, antinomias insuperáveis, que solicitam o homem para fora das linhas clássicas da existência, e o projectam num mundo de sonho, em que se refunde, afinal, o romantismo do desespero, para onde os estetas de falsas profecias nos estão a conduzir.

Para o romantismo do desespero, nem contam as leis eternas de Deus, nem valem as leis de emergência dos homens. Daí, a rebelião e o azedume, numa atitude constante de desconfiança e de autodefesa, tão facilmente encontradiça, por exemplo, em todos os filmes, em que James Dean é protagonista. Estou a pensar em “Fúria de Viver”, “A leste do Paraíso” e “O Gigante”. São filmes sombrios, feitos à imagem semelhança do actor, que nem sequer precisou de representar, para aparecer em cena. Bastou-lhe ser ele, tal e qual o romantismo do desespero o fez.

Em “Fúria de Viver”, James Dean é um inadaptado incorrigível, na escola e em tudo, e, por isso, um falhado e um indesejável social. Em “A leste do Paraíso”, a inadaptação e o cinismo atingem o desespero dentro do próprio lar paterno. E em “O Gigante”, vemo-lo encarnar o egoísmo cínico do arrivista falhado, no que há de mais profundamente humano no coração do homem. Creio serem estes os únicos filmes em que James Dean colaborou, e em todos eles o protagonista se desentranha em gestos absurdos, ferozmente egoístas, e com total desprezo pela comunidade. O reflexo da auto-defesa, que corresponde a este criminoso desprezo para com a comunidade, conduz, pelo seu próprio peso, à constituição de pequenos estados no estado, ou sejam as sociedades artificiais, que têm o seu paradigma na mania clubista, quase sempre organizada à imagem e semelhança das lojas maçónicas e das células comunistas. Havia uma célula natural, que era o lar, prolongado na amizade de vizinhança e na afinidade das famílias do mesmo sangue. Mas tudo isto se perdeu, quando se perdeu, o sentido superior da vida. Na sua vez, surgem as comunidades artificiais, que são os clubes, organizados em seitas de todas obediências, menos a legítima e nobilitante obediência à autoridade constituída.

Foi assim que os estetas de falsas profecias levaram todos os descontentes a trocar a milícia pelo ergástulo, e a substituir a ordem clássica da paz, que é a tranquilidade na ordem, pelo romantismo do desespero, que é a desordem definitivamente instalada na vida de cada um.

Para justificar todo este artificialismo, que os três filmes de Dean traduziram e talvez pretendessem legitimar, há quem diga que a coisa se explica pelo desencanto da juventude, em face da actual sociedade burguesa. Dizem que a juventude tem necessidade de sonho e que precisa de encontrar, numa sociedade autêntica, o lugar que lhe pertence. É verdade. Em todo o caso, parece-me que não é este o caminho do triunfo. Se não me engano, onde os estetas de falsas profecias querem conduzir a juventude é a um mundo ainda mais aburguesado do que aquele de que se queixam, visto ser um mundo infra-humano e de irresponsabilidade total. Pelo menos, é esse o sentido bem marcado nos três filmes de James Dean. E é também esse o sentido transparente nos dois livros, até hoje dados à estampa, por Françoise Sagan…

Ora, o futuro de cada um e o lugar que a cada deve pertencer na vida, não são coisas que venham burguesmente já feitas pelos outros, sejam os pais ou o Estado. Seria essa a pior forma de parasitismo burguês. O futuro, deve cada um conquistá-lo, à sua custa, no esforço constante de cada dia, a caminho de melhor e mais perfeita autorrealização. Só então, depois da auto-valorizarão, é que o homem se pode considerar com direitos, que o dever cumprido lhe conquistou. Tudo isto, que é elementar em ética social, está, porém, de todo em todo ausente, nos filmes de James Dean e nos livros de Sagan, que, por isso, alinham ao lado do pior e do mais parasitário burguesismo. Creio que tudo isto é claro como a luz do meio dia, para quem, em vez da palha das palavras, prefira, como eu, descer até ao conteúdo das ideias.

Sonho? Sim. É bom sonhar. Mas é preciso que o sonho se complete com o lastro da realidade. É preciso que o sonho não seja como moinho sem grão, ou como acção sem finalidade superior. É preciso que o acréscimo do sonho, alimentado por estetas de falsas profecias, não dispare no romantismo do desespero, preguiçoso ou anárquico, em que a juventude se está a precipitar. (3)

O sonho tem o seu lugar. Mas não basta. Requer-se, também, a tomada de consciência do real, e a certeza de que a realidade se não limita ao delírio da velocidade, nem no tempo, nem no espaço. (…) E desta prespectiva, em vez da evasão, no sonho, ou na embriaguez, que tanto pode ser de whisky, como de exibicionismo, abrem-se outros caminhos, em que ao homem se oferecem todos os recursos e todas as dimensões de que precisa, para se poder realizar. Claro está que estou a referir-me aos recursos da graça, e às dimensões sobrenaturais, que só Cristo nos pode dar. (…)

Pe. Agostinho Veloso, in BROTÉRIA - REVISTA CONTEMPORÂNEA DE CULTURA, Vol. LXV, número 4, Outubro de 1957, pp. 291 a 295

(1)  Jean- Creuzeau Marie, James et Françoise, in “ Le Monde Nouveau”, Paris, 12-V-57, pág. 10.

(2)  Pascal, Les Pensées, n. 527.

(3)  Jean-Marie Creuzeau, James et Françoise, em “Le Monde Nouveau”, Paris, 12-V-57, pág. 10.


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