“Não é bom viver no Portugal onde reina o
engano e a mentira institucionalizada.”
«Este artigo é um panfleto. Não acrescenta
nada de novo àquilo que digo há mais de dois anos, pelo que não tem interesse
mediático. Não é distanciado, nem racional, nem equilibrado, nem paciente, nem
tem um átomo da imensa gravitas de Estado que enche a nossa vida pública
no PS e no PSD, cheia daquilo a que já chamei redondismo e pensamento balofo.
Como vêem já disse isto tudo e estou-me a repetir. Não é sequer um artigo
feliz, que se faça com gosto e prazer. Prescindia bem de o fazer para falar de
outras coisas, refrigérios da alma, como se dizia no passado, seja livros, seja
o Inverno, seja algum momento especial, uma descoberta de amador curioso, uma
coisa que se aprendeu, uma calmaria hegeliana do espírito, ou uma negatividade
divertida e sagaz.
Bem pelo contrário. Não ilumina, não é
feito pela curiosidade, é feito em nome da voz que não tem voz e por isso tem
muitos adjectivos e podia ser todo escrito em calão, aqueles plebeísmos,
grosserias e obscenidades que tem nos dias de hoje a enorme vantagem de não
conter hipocrisia, porque são palavras inventadas contra a hipocrisia. Ao
menos, vamos hoje usar o esplendor das belas palavras do português contra o
abastardamento da língua como maneira de falarmos uns com os outros, de nos
entendermos na simplicidade do povo comum, ou na riqueza criativa de uma velha
fala, capaz de tudo se a deixarmos à solta, mas magoada e ferida pelo seu uso
para esconder vilezas e malfeitorias, e acima de tudo para esconder arrogâncias
ignorantes, que é a moeda falsa que para aí circula.
Pode ser porque eu dou valor às palavras —
uma sinistra manifestação da condição suspeita de intelectual — que me repugna,
enoja, irrita, indigna, encanita, faz-me passar do sério, a sua sistemática
violação pelo governo. Violação, exactamente como as outras violações. Devia
haver uma lei não escrita para punir a violência feita com as palavras e pelas
palavras, como há com a violência doméstica, a violência contra os mais fracos,
o abuso do poder. Devia haver uma lei não escrita para punir o envenenamento
das palavras pela desfaçatez lampeira, a esperteza saloia.
De novo, pela pecha de ser intelectual, —
um estado miserável nos dias de hoje, “treinador de bancada”, “comentador”,
“opinador”, “achista”, “inútil”, “velho do restelo”, “negativista”, ou qualquer
outra variante das palavras com que hoje o poder e os seus serviçais entendem
diabolizar o debate público que não lhes convém — é que me repugna, enoja,
irrita, indigna, encanita, faz-me passar do sério, a sistemática tentativa de
nos enganar, de nos tomar por parvos, de nos despachar com um qualquer truque
verbal destinado a dizer que uma coisa é diferente do que o que é, porque
convém que não se perceba o que é.
Os exemplos abundam. Por exemplo, chamar
aos cortes “poupanças”, como se não fosse insultuoso para quem quer que seja
ver a sua vida ficar miserável por uma ”poupança” virtuosa, cuja natural
bondade não pode ser atacada. Quem ousa ser contra poupanças? Pode-se ser
contra os despedimentos, contra a redução das despesas sociais, contra os
cortes, mas não se pode ser contra as “poupanças”. Mesmo quando elas mais não
sejam do que cortes, despedimentos, reduções de prestações, reformas miseráveis
ainda mais miseráveis, ou, como diz Bagão Félix, “diminuição do rendimento das
famílias”. Os espertos assessores de comunicação, que se esforçam todos os dias
para dar ao Governo a “política” que o professor Marcelo diz que ele não tem e
evitar assim “erros de comunicação”, são os aprendizes de feiticeiros deste
quotidiano embuste em que vivemos. Mas estão todos bem uns para os outros.
Chamar a um novo plano de austeridade, o
enésimo de há dois anos para cá, sempre precedido da mentira de que “não vai
ser necessária mais austeridade”, mais uma vez sobre os funcionários públicos,
os pensionistas e os que precisam de serviços públicos de saúde, educação, e
outros, essa coisa obscura e neutra de “medidas contingentes”, não é também um
insulto à nossa inteligência e, pior que tudo, uma ofensa aos que vão ser
vítimas daquilo que o Governo chama “desvios na execução orçamental”, ou seja
erros? A verdade, nua, bruta, cruel, dura, pétrea, é que cada vez que o Governo
erra, há um novo plano de austeridade destinado a garantir que a mesma receita
que falhou seja tentada de novo, com mais uns milhares de milhões retirados às
pessoas, às famílias, à economia, para pagar uma obstinação, um beco sem saída
ideológico, uma tese sem prova, uma abstracção intelectual, no fundo uma enorme
vaidade sem perdão. Sócrates deitou fora milhões e milhões mal gastos e
perdulários, Passos Coelho deita fora milhões e milhões para um vazio de
arrogância, ignorância e vaidade, sem melhorar o défice, aumentando a dívida,
sem se ver qualquer utilidade. Mas o dinheiro, antes como agora, foi para algum
sítio.
E como aceitar o supremo insulto fruto de
uma displicência que acaba por ser maldosa e arrogante, de se dizer que a
recessão para este ano “aumenta de um ponto percentual”, como se passasse de
35,4 para 36,4, quando passa de 35,4 para 70,8, usando estes números
imaginários para se perceber a enormidade do “ponto percentual” que significa
errar por 100%, duplicar por dois uma desgraça, que passa a ser o dobro do que
era, ou seja uma pequena coisa, “um pequeno ponto percentual”, como se fosse a
coisa mais natural do mundo.
Os erros agora também se chamam
“ajustamentos” e podem ser tidos apenas como a natural consequência da
“dificuldade das previsões macroeconómicas”, que se tem que ir “ajustando” mês
a mês. Mas os erros antes de serem “ajustados” acaso não foram instrumentos de
combate político, fonte de afirmação de legitimidade, atirados contra todos os
que suspeitavam da sua verdade e exequibilidade? Não tem importância,
encontra-se uma estatística qualquer que mostra que estamos no “caminho certo”,
mesmo que tudo esteja errado, e há sempre quem coma esta palha.
É tudo “ajustamento” porque os
manipuladores das palavras entendem que, lá fora da sua janela do poder, tudo é
plástico que se pode moldar, é tudo paisagem em que se pode plantar uma sebe
alta para não ver o mais de um milhão de desempregados “em linha com o que
estava previsto”, e colocar os portugueses numa jaula de ratinhos a correr para
fazer experiências. E que tal cortar metade da comida a ver se eles se
“ajustam” à “poupança” de só comer metade? Trinta morrem, quarenta ficam
doentes, vinte ainda têm gordura para aguentar. Aguentam, aguentam, diz o
tratador. Excelente, ficam dez por cento, a “selecção natural” funcionou e
deixou-nos com os mais fortes, os que se “ajustam”, os “empreendedores”.
Morreram alguns comidos pelos outros? Não há problema, sempre há ratinhos
“empreendedores” e que não são “piegas”, e que mostram as virtudes do modelo.
No dia em que este Governo for corrido,
pelo mesmo tipo de onda de rejeição que varreu o seu antecessor, só que agora
do tamanho das ondas do Canhão da Nazaré, vai sair com a atitude daquele que
diz: o último a sair que feche a luz e a porta, porque já não é connosco,
“queríamos mudar Portugal e não nos deixaram”. E irão para os seus lugares de acolhimento
confortável, já pensados e preparados, sem temor e sem tremor.
No entretanto, estragaram Portugal com a
mesma sanha do filósofo de Paris, numa situação que vai demorar décadas para
ser consertada, se é que tem remédio. Descaracterizaram o PSD como Sócrates fez
ao PS, tornaram pestíferos os políticos em democracia e as instituições da
democracia, destruíram a geração actual, a que tratam sobranceiramente como a
dos “instalados” e querem desempregar para “ajustar” o preço da mão-de-obra, e
hipotecaram a geração seguinte com a mesma antiga maldição da baixa qualificação,
do provincianismo, do quotidiano de subsistência onde não há recursos para os
bens materiais quanto mais para os “imateriais”.
Vão deixar-nos na periferia da periferia, como um país
eternamente assistido por uma Europa para quem pagar ao seu bom aluno são
trocos desde que ele se porte bem. Irá a ficará o BCE, a Comissão Europeia e o
Pacto orçamental. Ficará um país medíocre e remediado, uma praia razoável
para o Verão. Deles vamos herdar uma enorme colecção de invejas e
ressentimentos sociais, que dividirão os portugueses entre si, aumentando ao
mesmo tempo a apatia e a violência social.»
José Pacheco Pereira, in Jornal Público
de ontem, dia 23 – 02 – 2013
(Foi mantida a ortografia original)
Publicado por: http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.pt/2013/02/liberdade-onde-estas-quem-te-demora.html
Eis um drink
que merece ser sorvido até à alma!