A muralha rasga-se e Marvão abre-se pela Porta de Rodão. O arco desenha uma sombra convidativa e um recobro de frescura separa os dois territórios inundados pelo sol. A vila revela a sua intimidade. A pedra escura das muralhas mostra o seu espírito acolhedor e a luz meridional atinge a cal do casario ofuscando o nosso olhar. E aqui está a vila de Marvão, uma das mais lindas vilas do Alentejo.
Fachadas, janelas, telhados, varandas, portas tomam, gradualmente, forma, emergindo de um mundo de claridade. Estamos na Rua de Cima, estreita, calcetada com pedregulhos toscos. Propomo-nos a um deambular em sossego, adiando o momento que nos abrirá os grandes horizontes junto à muralha.
Por enquanto o passeio é intimista e convida-nos aos pormenores. Reparamos nas janelas cuidadas, nas varandas em ferro forjado, nos quintais acanhados repletos de frescura, nos canteiros mimosos, abrigados na sombra, correndo todo o comprimento das fachadas, uma bênção para as minúsculas flores silvestres que se aninham nos recantos viçosos.
O ar enche-se com chilreios. Um assomo de vida que, de certa forma, preenche o vazio humano que sentimos na povoação. Marvão não foge à desertificação, denominador comum, ao interior de Portugal. Vivem na vila das muralhas perto de 200 habitantes. O passado faz-se com histórias de muitas partidas, quer para as grandes cidades, quer para a emigração.
Há, também, mais recentemente histórias de redescoberta da vila. Reabilitam-se casas, embora os novos habitantes sejam, na grande maioria, sazonais. Viver hoje nestas alturas já não é degredo, nem tão pouco maldição. Um dito antigo afirmava o lugar como “Malvão”, porque os habitantes estavam condenados àquela altitude.
Um frio invernal, mergulhado em céus tumultuosos, faz da vila um ermo onde a agricultura era, e é, impraticável, um lugar para onde se ia não por vontade própria mas forçado. Não obstante a localidade cresceu e, por volta do século XVI, chegou a contar perto de 1500 habitantes.
Marvão é história antiga, com o berço provável nos ímpetos belicistas de Ibn Maruán, o mouro que fundou um reino independente e que, pelo século IX da nossa era, terá construído no local uma fortaleza. O primeiro extracto da, como foi apelidada, “fábrica eterna” de fortalezas, um plano de construção de sucessivas muralhas que atravessou toda a nossa história.
Marvão impôs a resistência dos seus flancos a sucessivas vagas de conquista. Espanha espreitava nas proximidades. Do penhasco à fronteira contam-se apenas 12 quilómetros de distância. Em seguida a geografia urbana abre-se no Largo do Pelourinho frente ao antigo edifício dos Paços do Concelho (séc. XVI) que albergou o Tribunal e a Cadeia. Actualmente o imóvel funciona como Casa da Cultura. Prosseguimos, numa subida que acompanha os relevos escarpados do dorso rochoso.
Tomamos a Travessa do Padre Júlio e encontramos um antigo forno que serve de padaria tradicional. Assalta-nos uma memória de pão caseiro, uma couraça áspera abrigando um miolo macio e fumegante. Chegamos tarde. O pão é labor das alvoradas. O pão já se encontrava frio.
Na Rua Dr. Matos Magalhães encontramos o edifício antigo da escola primária. Olhamos agora para o dramatismo das muralhas que se entrecruzam sobre as escarpas. No Museu Municipal, instalado na antiga igreja de Santa Maria, que encerra um acervo muito interessante, oferecendo uma viagem pela história local, com arte sacra, arqueologia e etnografia.
Deambulamos por uma linha de tempo que liga o Paleolítico até ao século XXI, desde os mistérios que erigiram os colossais menhires da região. Mas há muito mais: os bordados com casca de castanha (não fosse este o reino da dita), as flores de papel, o vestido de noiva negro com a mantilha longa, próprio de moça de boa família, com posses... Se fosse pobre não teria véu...
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