Ainda não é conhecida, por enquanto, a versão final e integral
do Estatuto do Aluno. Mas foram já adiantadas a suas grandes linhas
orientadoras, e é sobre estas que me proponho refletir.
Comecemos por sublinhar que uma “cultura da disciplina” não se
cria ou estabelece simplesmente por decreto, mas sim quando a disciplina se
tiver tornado – e for sentida como – “normal” nas escolas, e no limite ideal,
quando já nem se der por ela.
Uma “cultura da disciplina” na escola institui-se quando a
disciplina não for vista apenas pelo seu lado excecional e negativo, por aquilo
que proíbe e interdita – aspeto necessário, há que dizê-lo sem ambiguidades,
mas que é apenas instrumental, e nessa medida insuficiente -, mas
preferencialmente por aquilo que possibilita fazer, pela melhor liberdade que
consente a todos (alunos e também professores) para poderem expressar as suas
potencialidades.
Ou seja, teremos uma “cultura da disciplina”, não apenas de
direito mas de facto, quando a disciplina for compreendida e utilizada
estrategicamente como um recurso positivo, como um fator produtivo, que permite
melhorar as condições de ensino, abrir outras possibilidades para as
aprendizagens e formar melhores cidadãos.
Esta “cultura de disciplina” prende-se com uma “ética de
escola”, entendida como um compromisso fundamental entre todos os membros da
comunidade educativa para a educação dos alunos.
Esta “ética de escola” assume, assim, a forma de uma ética de
responsabilidade, que pretende tornar toda a comunidade escolar corresponsável
pelo ensino e formação dos alunos.
Porém, a orientação que tem vigorado neste domínio – como de
resto em quase todos os da educação – tem sido a da responsabilização quase
integral de uma das partes, a dos docentes, sobre os ombros da qual têm sido
endossado o grosso das responsabilidades, exigindo-lhe as contas pelo estado a
que chegou a nossa escola.
Mais ainda, sobre os professores impende um princípio
generalizado de desconfiança, senão mesmo de suspeita –incentivado pela própria
tutela, em que pontifica o consulado de MLR -, que se traduz no facto de a sua
capacidade de intervenção no domínio da disciplina estar sujeita a uma série de
peias burocráticas, de entraves administrativos, desequilíbrio que se acentua
pelo peso e pelo preceito garantístico conferido aos direitos do aluno e à sua
defesa, considerado sempre à partida um inocente que deve ser defendido perante
o “sistema”, personalizado pela figura “opressora” e “punitiva” do professor.
A participação dos EE, nessa perspetiva, é também percebida e
incentivada, não como um fator equilibrador – pelo papel primordial que deveria
assumir nas tarefas educativas -, mas como uma intervenção em “contrapeso” para
reforçar o lado dos “direitos e garantias” dos educandos.
Com tudo isto, ainda nos poderemos admirar pelo clima de
generalizada desresponsabilização e de laxismo que impera nas nossas escolas?…
Ora, aquela ideia de coresponsabilização – que articula os
conceitos de “cultura de disciplina” e de “ética de escola” –, levada até ao
fim, deverá significar que a responsabilidade pelos atos concretos de
indisciplina não seja simplesmente diluída, e que a imputação correlativa não
seja indeferida, mas o efetivo envolvimento de todos pelo arco da
responsabilidade, subjetiva e objetiva, que a todos – segundo o seu estatuto e
funções – incumbe nessa tarefa fundamental que é educar e ensinar.
O aluno deve ser chamado, em primeira linha, a responder
individualmente pelos seus atos – ou jamais se tornará um ser moral e um
cidadão consciente – e, conforme a natureza e gravidade disciplinar dos mesmos,
também o respetivo EE, que não tem apenas uma vaga “responsabilidade formal”…
Acontece com frequência, ainda, os professores sentirem na pele
este fenómeno paradoxal: por um lado, são os mesmos pais que não lograram ou
não quiseram impor educação e disciplina aos seus filhos que exigem aos
professores que consigam fazer o que eles não fizeram; mas por outro, muitos
desses pais vêm, depois, reclamar (e por vezes violentamente) com os
professores contra as imposições disciplinares ou regras de educação que estes
sentem necessidade de aplicar aos alunos.
(Fenómeno que talvez se fique a dever a um gesto reativo e
compensatório para tentar aliviar a consciência do sentimento de um dever
incumprido…).
A direção da escola e o professor – este mormente em contexto de
sala de aula – também deverão ser inquiridos, em segunda linha, acerca do modo
como interpretam e exercem o seu poder disciplinar. Porque a indisciplina
primeiro estranha-se, depois entranha-se…
De facto, a disciplina nas nossas escolas reveste
predominantemente uma modalidade paternalística, e/ou assistencial/terapêutica,
que mais não faz do que favorecer e prolongar a imaturidade e a dependência do
indivíduo.
O aluno é visto e protegido como um “caso”, o que lhe reforça a
ideia de que apenas lhe assistem “direitos”, de que não tem limites. Impregnado
pela ideologia protetora e confortável das “escolhas reflexivas”, de
relativizar as suas responsabilidades (“não sou eu o culpado” ou “ a culpa não
é só minha”) e poder negociar tudo (“o que é que eu tenho a ganhar se fizer
isto?”, “se eu obedecer, o que é que ganho em troca?”), a autoridade e o dever
são ressentidos por ele como coisas estranhas, pertencentes a um mundo
axiológico distante da escola e da educação.
A indisciplina que domina as nossas escolas, a ponto de parecer
já “naturalizada”, como alguma esquerda refém dos seus preconceitos ideológicos
– em que o mais comum é confundir autoridade com autoritarismo e disciplina com
repressão castradora – ainda não compreendeu, é uma forma perversa de retirar à
escola – pela mediocridade estupidificante que objetivamente promove – o seu
papel fundamental de formação humana e promoção social e cultural.
Farpas
In A Educação do meu Umbigo (https://educar.wordpress.com/2012/06/04/opinioes-farpas-28/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário