Descrevemos como susto a idade adulta não dando, aos
adolescentes e aos adultos em geral, a ideia de que é ao ser adulto que se tem
a maior liberdade, a maior capacidade de decisão e quando se é verdadeiramente
mais senhor do próprio destino e do seu percurso de vida.
A lavagem do carro
Imaginem que levam o vosso carro
à máquina de lavagem automática. Dirigem-se a uma gasolineira, conduzindo-o, e
seguem as instruções da pessoa que lá está. Ele vai dizendo: "mais à
direita, mais à esquerda, assim… pode parar!". A partir daí, a máquina
pegará no automóvel e, por mais que o leitor faça, não conseguirá mudar o rumo
das coisas, designadamente do seu automóvel. O que for, será.
A grelha da máquina «agarrará» nas rodas do carro e
levá-lo-á por aí, em direção a umas ameaçadoras escovas e a jactos de água, que
despejarão detergente e espuma (o leitor deixará de ver o que se passa), depois
mais água e, finalmente, uma outra máquina ameaçadora, que vem em direção ao
seu vidro e – confesse, leitor! – pensará sempre que aquela barra que despeja
jactos de ar quente não perceberá que tem um vidro, um carro e o leitor à
frente e fará uma razia em linha recta, decapitando-o.
No final deste filme, o leitor ficará satisfeito com o
trabalho, o seu carro está limpo e brilha, sobretudo se tiver pedido o programa
mais caro mas mais completo, e segue então viagem, novamente com poder sobre o
volante e sobre o rumo do seu destino.
A adolescência é assim. Tão fácil? Ou tão difícil?
O que é um adulto?
Ou, melhor, escrevendo o que dizemos nós adultos, aos
adolescentes sobre o que é ser adulto. Pegue-se num telejornal, num jornal ou
numa revista: tirando algumas excepções (bastantes, mas não as suficientes), os
adultos são descritos como assassinos, pedófilos, corruptos, mentirosos, gente
de objectivos rasteiros, gente que aparece porque está "in"
e está "in" porque aparece o inefável jet
set, grandes traficantes, maus políticos, exploradores e outros que
tais. Ou, então, as vítimas desses mesmos adultos. Nós próprios ao falarmos de
nós queixamo-nos permanentemente do trabalho, do cansaço, do IRS, do fisco, do
Governo, da malandragem, da troika e dos ladrões e… de tudo.
Ser adulto é, pois, uma questão simples. Ser adulto equivale, assim, a uma de
duas coisas: ser malandro ou ser vítima de malandro.
O discurso sobre a adultícia ainda é pior, quando
acrescentamos a Rádio Nostalgia: a criança que há em nós, a liberdade da
infância, os bons velhos tempos em que éramos jovens e não tínhamos
responsabilidades.
No entanto, a cereja no topo do bolo é quando dizemos
– talvez com razão, mas com alguns efeitos secundários indesejáveis – que os
erros do passado e detectados no presente vão ser pagos (e de que maneira!)
pelas gerações seguintes. Não discuto se é verdade ou mentira que cada português,
ao nascer, já está a dever balúrdios a toda a gente, seja aos mercados, seja à
senhora Merkel. Que sei eu! Mas para quem está na adolescência, a ver-se, qual
automóvel em máquina automática de lavar, engatilhado nas roldanas sem poder
acelerar, travar, virar à esquerda ou à direita e quando lhe dizem que as
escovas que vêm aí são terríveis, a dúvida é o que vai sair do outro lado. Um
carro limpo e brilhante, ou uma amálgama de ferros torcidos e a pintura riscada
de modo indelével?
Teremos, assim, de mudar o discurso sobre a adultícia,
mais do que repetir os chavões do costume sobre a adolescência – período
descrito por muitos pais como "terrível", cheio de problemas e um
susto. O que descrevemos, sem dar por isso, talvez, como susto é a idade
adulta, não dando aos adolescentes e aos adultos em geral a ideia de que é, ao
ser adulto, que se tem a maior liberdade, a maior capacidade de decisão e
quando se é verdadeiramente senhor do próprio destino e do percurso de
vida.
Ser adolescente em tempo de crise
O nosso país está em crise, o mundo está em crise. Que
grande novidade… Não sabemos o que o futuro nos reserva, os tempos estão e
serão difíceis. Que grande novidade… Os jovens nem sabem o que os espera! (e
alguém sabe?).
Curiosamente, o facto de as sociedades terem vivido
períodos enormes de crise, da palavra crise significar "crescimento e
oportunidade", de esta crise se dar (no nosso país) em níveis de
desenvolvimento nunca antes atingidos e de as gerações anteriores terem, elas
mesmas, passado sempre "as passas do Algarve", parece ser obliterado,
branqueado, esquecido. É como se o mundo, antes de nós, fosse uma maravilha e o
futuro um buraco negro para onde, sem hipóteses de fuga, avançamos.
Quem viu o filme de Woody Allen, Meia
Noite em Paris, recordar-se-á da vontade de muitas das personagens
em regressar à geração anterior, com a ilusão de que o mundo era muito melhor
do que é no tempo em que vivem. O próprio realizador comentou, numa entrevista,
com o sarcasmo que lhe é conhecido: "prefiro viver num mundo cheio de
problemas mas com antibióticos!". A ideia de que "antes é que era
bom" é errada. "Antes" poderia ser bom para alguns, mas era
muito mau para a larga maioria. O presente – então em Portugal, isto assume
proporções quase gigantescas – é muito melhor do que o passado, pelo que é
previsível (é certo!) que o futuro será melhor do que o presente. Só que, em
termos históricos, o futuro não se escreve num dia ou num ano, e também não
apenas numa dimensão económica, mas sim em décadas e em diversas perspectivas:
a económica e financeira, com certeza, mas a social, ética, cultural, etc. As
gerações dos nossos pais e avós passaram tempos terríveis: II Grande Guerra,
Guerra Colonial, ditadura fascista… tanta coisa de que, felizmente por um lado,
infelizmente pelo outro, os adolescentes não conhecem e os adultos já
esqueceram. Quem tinha 18 anos no 25 de Abril terá agora 55…
Que solução?
É bom que o nosso discurso mude, deixando vitimizações
de lado e a conversa fiada da infelicidade, da perseguição pelos outros e pelo
Estado, e do quão coitadinhos somos. É importante, na minha opinião, que os
nossos filhos saibam várias coisas e que isso seja acentuado:
1. Que ser adulto é ter uma fase da vida de enorme
liberdade, e que essa liberdade será tanto maior quanto a pessoa decidir, desde
cedo, ser senhor do seu percurso de vida e entender os graus de liberdade que
tem relativamente a ele, através das escolhas correctas e da reflexão e
ponderação sobre essas escolhas – quem pensar que está tudo predestinado ou que
o que decidir hoje não tem impacte no amanhã estará, sim, a cavar um futuro
perigoso. As teorias do carpe diem, ou do "viver cada
dia como se fosse o último", por muito gentis e engraçadas que sejam,
esquecem-se de um pequeno pormenor: é que tudo seria correcto se morrêssemos
amanhã mas se não morrermos – o que será certamente o caso – o nosso futuro
será mais difícil e pior se hoje não pusermos as pedras adequadas na calçada do
nosso percurso de vida.
Ter a cabeça nas nuvens mas os pés bem assentes na
terra parece-me uma solução engenhosa, criativa e eficaz…
2. Que as crianças e adolescentes têm uma vida como
nunca tiveram em bens, liberdade, educação, opções de produtos e bens,
conhecimento científico, acesso à informação e ao conhecimento, equipamentos,
sociedade legislada e organizada, enfim, uma vida que as gerações anteriores
ambicionariam ter e que construíram – não foi apenas a crise que lhes legaram,
mas sobretudo uma sociedade de tolerância, democracia e liberdade.
Nunca, como hoje, se viveram tempos de tanto respeito
pelos direitos humanos, de abundância e tanta qualidade de vida. Esta afirmação
é fundamentada em factos, não é apenas opinativa.
3. Que o
"quero tudo, já!" que reflecte o regresso à fase da omnipotência
narcísica dos 15-18 meses de idade, e que muitas das crianças e adolescentes
veem consagrado no seu dia-a-dia com pais que lhes dão tudo sem esforço e sem
conquista, que consagram os seus desejos ao mínimo "piu", não
esclarecendo que as expectativas não podem ser iguais à realidade e que é
através do trabalho, da sabedoria, e da vida, no seu percurso, que se irão
obter mais e mais coisas, tem de acabar porque não é exequível nem justo. O
"quero tudo, já!" que se viu concretizado nos cartõezinhos mágicos
que bancos e lojas davam às pessoas (como se fosse possível ter crédito
ilimitado sem que alguém viesse depois pedir contas e juros, ou até mesmo como
se fosse lógico, ético e moral contrair dívidas para gozo efémero e imediato
sem que, no futuro, isso viesse a cair sobre quem as contraiu), tem de acabar
com o "não!" que dizemos aos nossos filhos de ano e meio ou dois
anos, quando nos pedem mundos e fundos.
O
"não" é estruturante, desde que dito com afecto e firmeza, coerência
e consistência. Seria aliciante não haver código
da estrada, mas o caos no trânsito que se seguiria seria um preço demasiado
caro a pagar, para lá da ineficácia e de não chegarmos a lado nenhum por termos
tudo entupido à nossa frente. Com o percurso de vida é igual, embora as margens
do rio não devam ser nem tão estreitas que o rio entra em torrente, nem tão
largas que o rio alaga tudo e não progride.
4. Que a vida é
difícil, em alguns períodos mais, noutros menos, que há épocas de vacas gordas
e outras de vacas magras, mas que a sábia gestão de bens, expectativas, desejos
e trabalho, numa óptica estratégica e táctica, pode conseguir airbags
que evitam males maiores e permitem uma boa navegação ao longo da
vida.
Sem estar com um discurso do "Ó tempo volta para
trás", é bom relembrar a história dos pais, da família, da comunidade, do
país… porque a memória é curta, e muito mais quando houve uma revolução
paradigmática em termos de informação e comunicação.
5. Que ser
adolescente em tempos de crise é normal, porque a crise é inerente a todas as
fases da vida, incluindo a adolescência e talvez até mais pela velocidade de
crescimento, desenvolvimento, autonomia, identidade, projectos, afectos e
outras coisas que tal e que cada um poderá dar a volta à crise se mantiver a
lucidez, tentar a excelência de si próprio, esforçar-se por conseguir
ultrapassar-se e assumir o aperfeiçoamento como objectivo de vida.
Os filhos
não são nem podem ser a segunda edição do nosso livro, mesmo que com algumas
correcções e emendas, e uma nova capa. Os filhos são o livro deles, com algumas
dicas da nossa parte mas escrito por eles. Adolescer em tempos de crise é quase
um pleonasmo. Mas, em todas as fases da vida, vivemos em crise, entrecortada
por períodos de acalmia, de reflexão e também de fruição do que se foi
estruturando e organizando, mas se a seguir à tempestade vem a bonança, como
diria La Palice, a seguir à bonança virá necessariamente uma tempestade.
Continuemos
a apoiar os nossos filhos, no seu processo de crescimento, segundo os
princípios e valores que são os nossos, mas com uma grande capacidade de ouvir,
escutar, dialogar, negociar e respeitar. Reciprocamente.
E mostremos – para nosso bem, igualmente –, que ser
adulto é bom. Que o carro que vai sair do outro lado da máquina de lavar, depois
da ameaça daquelas enormes escovas azuis que avançam à velocidade quase da luz,
com barulhos e tremores, depois da nuvem branca de espuma que não nos deixa ver
nada e da outra grande máquina de ar quente que avança em direcção a nós, o
carro sairá do outro lado limpo e brilhante a cheirar bem e com aspecto novo,
mesmo que subsistam alguns riscos e "cicatrizes" de factos passados.
Mas, claro, como em tudo na vida, este sucesso dependerá da qualidade e
afinação da máquina, da competência do operador e da vontade e força de vontade
do próprio.
Há escolhas,
dificuldades, obstáculos e crises. Mas há nós próprios, e é isso que temos de
dizer aos adolescentes, caso contrário afirmar-nos-emos enquanto adultos como
fracassados e falhados, o que, convenhamos, não será bom, nem para a nossa
imagem, nem para o modelo que devemos ser (e que somos) para eles.
Mário Cordeiro, in Jornal o Público de 20/06/2013
O autor é médico e professor de Pediatria.
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