Gilles Lipovetsky, professor de filosofia na
Universidade de Grenoble, autor de vasta obra publicada onde reflete sobre as
sociedades contemporâneas (A Era do
Vazio, O Luxo Eterno ou O Crepúsculo do
Dever, entre outros), teórico da «hipermodernidade», esteve há pouco tempo
em Portugal para participar numa conferência subordinada ao tema A Busca da
Felicidade, que decorreu na Culturgest na qual se pretendeu refletir a
felicidade do ponto de vista científico e das suas implicações nas práticas
sociais e culturais no mundo contemporâneo. Recentemente foi publicado entre
nós o seu último ensaio, A felicidade paradoxal – Ensaio sobre a Sociedade
do Hiperconsumo (Le bonheur paradoxal. Essai sur la societé
d’hyperconsommation, saído em 2006 na Gallimard), uma reflexão sobre a
sociedade de consumo atual.
Depois do aparecimento do capitalismo de
massas, no fim do século XIX, e da «sociedade de abundância», no pós-guerra, o
mundo vive hoje uma nova forma de consumo, iniciada nas duas últimas décadas e
marcada pela oferta permanente de produtos em escala e intensidade jamais
observadas. Segundo Lipovetsky entrou-se assim num terceiro estádio do
capitalismo, ao qual chamou «a sociedade do hiperconsumo».
O autor analisa a relação paradoxal que,
em seu entender, os indivíduos celebram hoje com um universo dominado pelo
mercado, onde nem a esfera da intimidade consegue escapar. Num curto espaço de
tempo, novos modos de vida e costumes instituíram uma nova hierarquia de
objetivos e uma nova relação do indivíduo com as coisas e o tempo, consigo
próprio e com os outros. A vida no presente sobrepôs-se às expectativas do
futuro histórico e o hedonismo, às militâncias políticas. Em contrapartida, a
febre do conforto ocupou o lugar das paixões nacionalistas e os lazeres
substituíram a revolução, diz o filósofo. Em suma, o melhor-viver tornou-se uma
paixão das massas, o objetivo supremo das sociedades democráticas, um ideal
exaltado em cada esquina. O bem-estar tornou-se o novo deus, sendo o consumo o
seu templo e o corpo a sua permanente liturgia, acrescenta.
Nesta nova «era do hiperconsumo», o apelo
ao consumismo entranhou-se no quotidiano de todas as classes sociais e definiu
uma forma insólita de relacionamento do indivíduo consigo mesmo e com o outro,
para o bem e para o mal, diz Lipovetsky. Numa sociedade onde as necessidades
dos cidadãos estão constantemente em observação e a ser alvo de elaboradas
estratégias de mercado, o filósofo considera que as pessoas são estimuladas, de
forma manipuladora, a consumir.
Esta sociedade e este tipo de relação
geraram aquilo a que o filósofo considerou chamar um tipo de homo consumericus: voraz, móvel,
flexível, liberto das antigas culturas de classe, imprevisível nos seus gostos
e nas suas compras e sedento de experiências emocionais e de (mais) bem-estar,
de marcas, de autenticidade, de imediatidade, de comunicação. Como se,
doravante, o consumo funcionasse como um império sem tempos mortos cujos
contornos são infinitos.
No entanto, alerta o ensaísta, estes
prazeres privados originam uma felicidade paradoxal, pois o homo
consumericus goza de ampla liberdade face às imposições e ritos coletivos,
mas a sua autonomia pessoal traz consigo novas formas de servidão. Assim, o
século XXI aproxima-se perigosamente de uma certa forma de totalitarismo, que
coloniza as existências dos indivíduos. Pode, por um lado, funcionar como uma
válida e vigorosa terapia que ajuda a afastar as frustrações diárias; mas por
outro, tornar-se um causador de ansiedade, num mercado cujo objetivo primordial
é a incessante oferta de «novidades». Mesmo quando inflacionadas, como por
exemplo as novas e polémicas chuteiras de Ronaldo, com ligeira alteração a
partir do modelo anterior, mas cujo preço passou imediatamente para mais do
dobro.
O mercado de consumo é superabundante,
compreendendo gente com alto poder de compra, mas também os pobres e os
excluídos. Sustentando o paradoxo, Lipovetsky entende que o hiperconsumo
reduziu as diferenças entre as classes sociais, alimentando-se ao mesmo tempo
delas, uma vez que ao incitar a compulsão pela compra como objeto de desejo, a
sociedade de hiperconsumo acabou por conduzir as pessoas e famílias com menos
rendimentos mensais a serem consumidores apenas potenciais, isto é, apenas na
sua imaginação.
A consequência dessa impossibilidade, por
falta de meios materiais, pode vir a ser a delinquência, a violência ou a
criminalidade. Ao mesmo tempo, para compensar os mercados da exclusão ou daqueles
que vivem de forma mais precária, o mercado replica com contrafação ou cópias,
procurando contribuir para o controlo da raiva em não se consumir como os
outros.
A comunicação publicitária tem aqui um
papel relevante, contribuindo para controlar a esfera das necessidades e
transferindo o poder de decisão do consumidor para as empresas, cuja profusão
publicitária continua a ter sucesso através da forma como faz valer os seus
produtos e na organização que faz das visões do mundo, comunicando valores e ideias
que sejam capazes de fidelizar como acontece com as campanhas «Just do It» da
Nike, «Be Yourself» da Calvin Klein ou «Think Different» da Apple.
Nesse sentido Lipovetsky debate-se com as
teses de No Logo de Naomi Klein obra emblemática da crítica à fetichização
do consumo. Considera que ao enfatizar a tirania das marcas na sociedade, a
autora ao não por em linha de conta que as pessoas dispõem de liberdade para
escolher e falando da medicação do consumo, como terapia quotidiana.
No final, o autor questiona-se sobre «para
onde caminha o hiperconsumo». Na tentativa de responder à questão procura saber
se existe saída para uma sociedade de hiperconsumo sustentável. Uma vez que a
felicidade é o valor central da civilização do consumo, ainda que variando nos
seus conteúdos ou temas, entende que pode desviar-se esta felicidade do consumo
para alguns sucessos afetivos ou do foro psicológico ou espiritual. Seria assim
no hedonismo que poderíamos encontrar a via privilegiada para obter alguma
felicidade, independentemente da sua efemeridade.
Os aspetos paradoxais da felicidade estão
longe de ser definitivos e o debate para assuntos prementes como as ameaças
ambientais à escala global, a solidariedade intergeracional ou o modelo social
europeu, são algumas das manifestações de que há mais sociedade para além dos
problemas dos indivíduos. No entanto, a responsabilidade num consumo
sustentável é uma forma de sabedoria que leva à resistência num mundo em que há
poucos amanhãs, conclui Lipovetsky.
Por Alexandra Silva
Gilles Lipovetsky (2007). A felicidade Paradoxal.
Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Lisboa: Edições 70. 357 pp. [ISBN: 978-972-44-1354-9]
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