“Sem hipocrisia não há civilização, e isso é a prova de que somos
desgraçados: precisamos da falta de
caráter como cimento da vida coletiva.”
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Luiz Felipe Pondé
“Coimbra, 16 de Outubro de 1945 – Uma cobra de água numa poça
do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos
gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto,
diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e o uivo do
plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os
preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que
neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já quase decifrado, e
sabemos de cor as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem
devorar. Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com os dentes
caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os antigos
pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos
jardins zoológicos e botânicos ver, pacata e sàbiamente, em jaulas e canteiros,
o que já foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos
captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de escolher
tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e
o que era bravo, esse é que possuiu verdadeiramente a vida e o mundo. Diante
duma natureza inteira e una, também ele tinha necessariamente de ser inteiro e
uno. Sem amigos e sem vizinhos, sozinho contra as árvores e contra as sombras,
ele era uma fortaleza em si, tendo na própria pele as ameias. Que totalidade a
de um ser que não pode confiar senão em si! Socialmente, seremos assim (e somos,
certamente) mais fáceis de conduzir, mais úteis, mais progressivos. Mas,
individualmente, a que distância estamos de um homem das cavernas! Que tamanho
o dele, a caçar bisões, e que pequenez a nossa, a ganhar taças em torneios de
tiro aos pombos!
O nosso gritinho de horror diante de qualquer lesma dá bem a
perdição a que chegámos. Civilizámo-nos, mas à custa da nossa mais profunda
integridade, dispersando-nos nas coisas que fomos desvendando.
Na cobra de hoje ninguém viu sinceramente veneno ou morte.
Vimos todos, sim, o manual que aprendemos no liceu. E o estremecimento das
meninas histéricas, eco delido do uivo profundo de pavor e de incerteza dos
nossos antepassados, foi dum ridículo tal que respingou outros aspectos e
outros recantos da existência. Que espécie de sinceridade profunda, de lealdade
incontroversa, haverá, por exemplo, em acreditar em Deus com a bomba atómica na
mão?
É bem que o homem
faça todas as experiências, inclusivamente consigo. Que liberte a energia das
pedras e se liberte também a si de todas as clausuras. Mas os instintos?
Poderá, na verdade, ele viver desfalcado dessa força que o fechava como um
punho e lhe dava uma coesão igual à dos átomos antes de serem bombardeados?
Pelo caminho que levamos, um dia virá em que tudo em nós será consciência,
compreensão e sabedoria. Mas nessa mesma hora estaremos desempregados no mundo.
Todos saberemos resolver a equação da vida na ardósia negra onde dantes eram as
trevas da nossa virgindade criadora, mas talvez já não haja vida, então.” …
Miguel Torga, in "Diário (1945)", vol.
IV, 1999, Publicações Dom Quixote, pág.250 e 251
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