O Problema Essencial da Vida


"Sem a cultura e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação autêntica é um dom para o futuro."

Albert Camus

Wifredo Lam (1902-1982), "A Selva"
Museu de Arte Moderna, Nova Iorque

O problema essencial da vida, que é o problema da realidade ou da verdade, não existe, nem pode existir em iguais termos para o homem de inteligência superior e para o homem vulgar. O homem de inteligência superior não tem, é certo, melhores elementos para descobrir a verdade do que o mais fechado dos idiotas. O que tem é melhores elementos para compreender porque é que ela se não pode descobrir. Mas a descrença, a que chegam todos os espíritos elevados, em que a razão predomina sobre o sentimento, sendo para eles tónica, é absolutamente desastrosa para os inferiores. Sem fé, sem crença, o homem vulgar reduz-se a um bicho; com fé, com crença, o homem superior baixa de posto. De aí o terrível paradoxo, que ataca todo o homem ao mesmo tempo superior intelectual e moralmente; que é inferior não sentir a descrença, e inferior pregar a descrença que sente. O inferior não é capaz de descrença, porque a crença é um estado orgânico dos instintivos. Por isso a descrença, caindo nesse solo impropício, ou se torna um fanatismo às avessas, ou um materialismo sem teoria, ou uma simples estupidez.

Assim a especulação filosófica (teórica) parte forçosamente dos dados elementares do conhecimento, que são o sujeito e o objeto, e a consequente relação entre eles, assim a especulação prática parte dos dados elementares da vida, que são o organismo e o meio e as consequentes relações entre eles. A especulação teórica abrange as partes todas da experiência; a especulação prática abrange apenas aqueles fatores da experiência (…)

(Como é que “Verdade”, a Realidade, em um caso, corresponde a Vida, em outro?)

 
A religião é uma metafísica vital, a ciência da utilidade.

 
1.    O homem é um animal irracional, exactamente como os outros. A única diferença é que os outros são animais irracionais simples, o homem é um animal irracional complexo. É esta a conclusão que nos leva a psicologia científica, no seu estado actual de desenvolvimento. O subconsciente, inconsciente, é que dirige e impera, no homem como no animal. A consciência, a razão, o raciocínio são meros espelhos. O homem tem apenas um espelho mais polido que os animais que lhe são inferiores.

 
2.    Sendo assim, toda a vida social procede de irracionalismos vários, sendo absolutamente impossível (excepto no cérebro dos loucos e dos idiotas) a ideia de uma sociedade racionalmente organizada, ou justiceiramente organizada, ou, até, bem organizada.

 
3.    A única coisa superior que o homem pode conseguir é um disfarce do instinto, ou seja o domínio do instinto por meio de instinto reputado superior. Esse instinto é o instinto estético. Toda a verdadeira política e toda a verdadeira vida social superior é uma simples questão de senso estético, ou de bom gosto.

 
4.    A humanidade, ou qualquer nação, divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte; os apreciadores de arte; e a plebe. As épocas maiores da humanidade são aquelas em que sobressaem os criadores de arte, mas não se sabe como se realizam essas épocas, porque ninguém sabe como se produzem homens de génio.

 
5.    Toda a vida e história da humanidade é uma coisa, no fundo, inteiramente fútil, não se percebe para que há, e só se percebe que tem que haver.

 
6.    A plebe só pode compreender a civilização material. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.

A metafísica, na sua essência, isto é, no que de ao mesmo tempo mais lato e mais simples comporta o seu conceito, assenta em uma distinção, possível só a conscientes desenvolvidos, entre o conhecimento e a vida, ou com precisão mais verbal, entre conhecer e viver. Só uma longa experiência humana, acumulada e transmitida, pôde criar um tipo de homem primeiro inactivo, por quaisquer circunstâncias que atenuassem o estado de guerra inevitavelmente primitivo (primordial) entre os humanos, e depois, por apuramento especializado desses inativos, o tipo já propriamente especulativo.

O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não.

Fernando Pessoa, in Obras em Prosa, Textos Filosóficos, Vol. VI, Círculo de Leitores, 1987. Páginas 107, 108.

Fonte: http://www.citador.pt/

Nenhum comentário: