A democracia, a crítica e o sofá de Freud


“Os que invalidam a razão devem pensar seriamente se estão a argumentar contra a razão com razão ou sem ela; se for com razão, estabelecem o princípio de que estão a trabalhar para a destronar; mas se argumentam sem razão (que, para serem coerentes consigo próprios, é o que devem fazer), estão fora do alcance da condenação racional e também não merecem um argumento racional.”

Ethan Allen*, in O Mundo Assombrado Pelos Demônios – A Ciência Vista Como uma Vela no Escuro de Carl Sagan (pág. 327)
 
Polemizar é debater ideias. Do debate brota a síntese, o caminho a seguir, embora haja quem marque passo.

Quem polemiza, justa ou injustamente, fica com travo amargo.

Quem escreve ou fala publicamente não escreve só por escrever, nem fala só por falar. Por diletantismo! Quer transmitir mensagens e ideias. De contrário, escreveria um diário íntimo ou usava um gravador para se ler ou se ouvir, ou mastigava silêncio que é ainda melhor.

Se a escrita ou a fala se dirigem à crítica social ou política vão gerar o tal travo amargo no criticado ou atingido, semeiam odiozinhos, coisas mesquinhas, muito pequeninas! Dissimulados de variadas formas.

Num espaço democrático, a participação cívica e política envolve, quase sempre, uma posição crítica, de discordância, onde se ponderam os dois pratos da balança: o opinador, os destinatários desta, os defensores e os adversários de um e outro.

É a participação cívica e política dos cidadãos na vida e enriquecimento democráticos.

É o “a, b, c” da dialéctica de um mundo democrático que, por isso mesmo, cada vez mais se sente em evolução e participativo.

A crítica pode operar-se com veemência, contundente, mordaz, mas deve ser lida como tal, crítica, modo diferente de ver e encarar as coisas, os problemas, os desafios que se colocam à República, à comunidade e ao indivíduo.

Bate o ponto aqui.

Uma palavra a mais, um dito a menos e infeliz, uma referência mais picante, odiozinhos antigos e dissimulados são erigidos a ofensas gravíssimas à honra e à dignidade.

Se o escriba avança a opinar discordantemente por aí fora, toda a honra fica abalada de dor, sofrimento e sangue.

A ofensa sobe quanto mais certeira foi a imputação!

Falam aí a ausência de poder de encaixe, a incapacidade de aceitação da crítica, a fragilidade das convicções, ao cabo e resto, défice de formação democrática.

O juiz penal é chamado para sarar a honra ofendida!

Se Eça de Queiroz cá voltasse (que jeito nos dava!), não haveria espaço em qualquer majestoso tribunal para arquivar os processos com que teria de alombar, cárcere onde o metessem, conta bancária que suportasse as indemnizações a pagar. Tal era contundente a sua crítica, corrosiva e certeira a ironia.

Mediocridades e pequenez! Convocar o juiz penal porque fulano ou sicrano no comentário ou opinião críticos não foi de destreza literária, causam grande fastio.

Há sábios de barriga a abarrotar de “ciência anónima, com vaga noção de tudo e conhecimento de nada”. Por aí pululam. Os “ressequidos”, Eça dizia. Não beberam uma gota “daquele leite de humana bondade..." de que falava o adorável Charles Dickens.

Atiram a pedra, ocultam a manápula!

Tomem o sofá de Freud!

 
Alberto Pinto Nogueira, Procurador-geral adjunto

in JORNAL O PÚBLICO (20/05/2013)

*Ethan Allen foi o chefe dos Green Mountain Boys, na tomada do Fort Ticonderoga.

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