
…“Em
Portugal, a felicidade é reprimida. Não se pode entrar feliz num lugar,
resplandecente na cara soalheira que Deus Nosso Senhor nos deu, sem que algum
marreco nos venha meter o queixo no sovaco e pergunte: «Então? O que é que
aconteceu? Saiu-lhe a sorte grande ou quê?» Se uma mulher, de repente, pega na
bainha da saia e se põe a atravessar a rua aos saltinhos, só porque é
precisamente assim que lhe apetece atravessá-la, há uma corrida às cabines
telefónicas a ver quem é o primeiro a ligar para o Júlio de Matos.
A
felicidade, em Portugal, é considerada uma espécie de loucura. Porquê? Porque
os portugueses quando vêem uma pessoa feliz, julgam que ela está a gozar com
eles. Mais precisamente: com a miséria deles. Não lhes passa pela cabeça que se
possa ser feliz sem ser à custa de alguém. Acham que as pessoas felizes são
esponjas-com-pernas, daquelas de banho, cor-de-laranja, muito alegres, que
andam pelas ruas a chupar a felicidade toda às outras pessoas.
Se houvesse
um livro de Bernardim Ribeiro que começasse «Menina e moça voltei para casa dos
meus pais e desde esse dia nunca mais chorei uma só lágrima», nunca teria
arranjado editor. Portugal pode não ser um país triste, mas é decididamente um
país infeliz. Em mais nenhuma língua «ser feliz», que deveria ser uma coisa
natural, significa também «ter sorte», ser bem sucedido.
Ninguém tem
pena das pessoas felizes. Os Portugueses adoram ter angústias, inseguranças,
dúvidas existenciais dilacerantes, porque é isso que funciona na nossa
sociedade. As pessoas com problemas são sempre mais interessantes. Nós, os
tontos, não temos interesse nenhum porque somos felizes. Somos felizes, somos
tontaços, não podemos ter graça nem salvação. Muitos felizardos (a própria
palavra tem um soar repelente, rimador de «javardo» vêem-se obrigados a fingir
a dor que deveras não sentem, só para poderem «brincar» com os outros meninos.
É assim.
Chega um infeliz ao pé de nós e diz que não sabe se há-de ir beber uma cerveja
ou matar-se. E pergunta, depois de ter feito o inventário das tristezas das
últimas 24 horas: «E tu? Sempre bem disposto, não?». O que é que se pode
responder? Apetece mentir e dizer que nos morreu uma avó, que nos atraiçoou uma
namorada, que nos atropelaram a cadelinha ali na estrada de Sines.
E, no
entanto, as pessoas felizes também sofrem muito. Sofrem, sobretudo, de «culpa».
Se elas estão felizes, rodeadas de pessoas tristes, é lógico que pensem que há
ali qualquer coisa que não bate certo. As infelizes acusam sempre os felizes de
terem a culpa. É como a polícia que vai à procura de quem roubou as jóias e
chega à taberna e prende o meliante com ar mais bem disposto.
Em Portugal,
se alguém se mostra feliz é logo suspeito de tudo e mais alguma coisa. «Julgas
que é por acaso que aquele marmanjo anda tão bem disposto?», diz o espertalhão
para outro macambúzio. É normal andar muito em baixo, mas há gato se alguém
andar nem que seja só um bocadinho «em cima». Pensam logo que é «em cima» de
alguém.
Ser feliz no
meio de muita gente infeliz é como ser muito rico no meio de um bairro-de-lata.
Só sabe bem a quem for perverso.
Infelizmente,
a felicidade não é contagiosa. A alegria, sim, e a boa disposição, talvez, mas
a felicidade, jamais. Porque a felicidade não pode ser partilhada, não pode ser
explicada, não tem propriamente razão. Não se pode rir em Portugal sem que
pensem que se está a rir de alguém ou de qualquer coisa. Um sorriso que se
sorria a uma pessoa desconhecida, só para desabafar, é imediatamente mal
interpretado. Em Portugal, as pessoas felizes sofrem de ser confundidas com as
pessoas contentes.
As pessoas contentes, satisfeitas,
da palmadinha na barriga, que não querem nada da vida para além do que já têm,
é que podem ser suspeitas. As pessoas felizes, coitadas, não. O mais das vezes
são criaturas insatisfeitas. Só que não se importam muito com isso. A pessoa
contente é aquela que sabe o que se passa e tem tudo o que quer. A pessoa feliz
é aquela que, independente do que se tem, não só não sabe o que se passa como
também não quer saber. As pessoas felizes não pensam nisso. Pensam tanto como
as abelhas. Em vez de viver, zumbem.
As pessoas felizes precisam de se
afirmar, de deixar de fingir que também estão permanentemente na fossa. Devia
haver emblemas grandes a dizer «EU SOU FELIZ E ESTOU-ME NAS TINTAS» ou «EU SOU
FELIZ E NÃO TENHO CULPA». É preciso acabar com subtil racismo dos Portugueses
contra a raça dos felizes. As pessoas felizes são tão portuguesas como as
outras. Também choram, também sofrem, também se angustiam. Só que menos. (Hi!
hi! hi!...)
Está bem, pronto. A revolta começa
aqui. As pessoas felizes não sofrem quase nada! Todos agora: Hi! hi! hi!...
Miguel Esteves Cardoso, A
Felicidade, in 'Os Meus Problemas' (ASSÍRIO
& ALVIM, 11ªedição, páginas 125-127)
Nenhum comentário:
Postar um comentário