A duração da
crise, a intensidade da confusão e a dificuldade em compreender o processo de
decisão do Presidente, ajudaram decisivamente a criar a ideia de que as
eleições estavam ao virar da esquina.
No final (?) de
quatro semanas loucas, qualquer pessoa tem razões de sobra para duvidar da
solução. Mas com um pouco de frieza percebe-se que o novo modelo do Governo, os
nomes que o integram e o grau de compromisso que os dois partidos foram
obrigados a assumir, transforma o Governo remodelado numa solução para dois
anos. Se lá chega ou não, é outra questão, mas que tem esse horizonte, isso
parece-me óbvio. Este dado não muda rigorosamente nada nas questões de fundo: a
dramática austeridade, a irrealidade das metas orçamentais, as profundas
diferenças entre PSD e CDS e as irremediáveis desconfianças de Passos sobre
Portas e vice-versa.
Um Governo que
nasceu torto nunca se endireita mesmo. E um Governo que transformou a
austeridade e os cortes num modo de estar não ganha eleições. Mas pode fazer
todo o mandato. PSD e CDS perceberam isso, nem que seja pelo mais básico
instinto de sobrevivência. A oposição devia perceber isso. Como dizia o António
Vitorino, por razões bem diferentes, "habituem-se".
Ricardo Costa, in Jornal Expresso de 25 de Julho de 2013
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Cécile Kyenge, ministra
italiana da Imigração, tem sido alvo dos actos mais abjectos. Há dias, Roberto
Calderoli, vice-presidente do Senado, chamou-lhe orangotango. Na passada
sexta-feira, atiraram-lhe bananas. Estes actos definem,
naturalmente, apenas e só quem os pratica. A barbárie vem à superfície, desta
vez, por Cécile Kyenge ser negra. A ministra da Integração poderia ter
respondido, por exemplo, citando Simone de Beauvoir: não podemos deixar que os nossos carrascos nos
criem maus hábitos. Poderia e teria razão para isso. Todavia,
Cécile Kyenge preferiu outro caminho. A citação seria um mero recurso retórico.
Cécile meteu o discurso na realidade: com
tantas pessoas a morrer de fome por causa da crise é triste desperdiçar comida
assim. O sentido democrático e a maturidade cívica também são isto.
O desapego de si, da sua posição formal como ministra e a sensibilidade que
permite pensar em terceiros mesmo sob fogo cerrado. Acossada, não se defendeu a
si própria, mas remeteu para o sofrimento de outros, ridicularizando assim,
ainda mais, o gesto obsceno dos que a pretendiam ofender. Na resposta, Cécile
foi simplesmente Cécile. Trata-se, obviamente, de uma chapada de luva negra que
estalou na face dos energúmenos. Mas é, também, um exemplo para quem, a uns
milhares de quilómetros de distância, ainda há umas poucas semanas, com
altivez, desvio corporativo e insuflado sentido da própria honra, citou
Beauvoir para chamar carrascos,
de forma absolutamente desproporcionada, aos cidadãos que se manifestaram nas
galerias da casa que se diz ser a da nossa democracia.
Rui
Rocha, in http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/
em 27.07.13
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